O Sítio
Aquele velho projeto de fazer um fãzine com os amigos...


terça-feira, março 30, 2004  

Um manifesto sobre o cansaço

Já tô de saco cheio da literatura que ando vendo por aí. Palavras sobre sentimentos e imagens. Escritos que formam uma fotografia. Escritores que dão a forma de um cenário aos sentimentos. Estou falando dos discípulos de Manoel de Barros.

Sim, é um bom poeta. Sim, eu estou puta da vida. Sim, escrevendo passionalmente. Mas, sim: com vontade de acordar o mundo inteiro, bater na cara de todo mundo e pedir pra que... Não, não sei bem o que pedir. Mas eu vou pedir. Juro que vou.

Cansei dessa literatura de menino de classe média. Cansei da literatura que é facilmente classificável. Cansei de ler que sentimentos batem lá dentro da gente, de uma forma tão única e tão individual, que não há palavras para explicar, somente imagens para exemplificar. Cansei da falta de substância.

Eu quero ler a verdade absoluta de cada um, de todo mundo e de qualquer um. Eu quero ver as imagens que a gente inventa. Eu quero que as letras falem das coisas. E enxergo uma inversão: as coisas dominando as palavras e os escritores, fracos de certeza de si, deixando-se levar por essa corrente de nosso tempo, feita de sei lá o quê. Só encontro palavras que se perdem. Eu quero escritores escrevendo.

Se isso é o início de um manifesto? Não sei, pode ser. Eu quero ver quem escreva e mande à merda o próprio umbigo. Eu vou rasgar tudo o que eu escrevi. E vou usar minhas palavras pra construir qualquer coisa de útil. Porque não há gente nesse mundo que não tenha participação em seu atual contexto. Contexto de qualquer coisa. Eu quero ver quem vai escrever sobre contextos. Quem vai sair de si. Quem vai usar os olhos pra olhar, não pra se autofotografar. Eu quero é ver essa confusão. E vou gostar: sei que muita coisa vai aparecer quando eu começar a vasculhar.

O que eu não vou aguentar, meu amigo, é entender que gente só sabe viver com mais gente. Que gente gosta de mais gente. Que gente se complica com gentes. Que gente é tudo gente. E que tem gente decretando a ordem do não-gentismo.

Começo a faxina por mim: entrego meus olhos, minhas mãos, meus cotovelos, entrego tudo ao mundo todo. E nada me pertence, e nada é teu.

escrito por Júlia | 10:54 |


sexta-feira, março 26, 2004  

Três Kubricks do Começo

Assisti recentemente a três Kubricks do comecinho da carreira dele. Foram A Morte Passou por Perto (Killer's Kiss, 1955), O Grande Golpe (The Killing, 1956) e Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957).


O primeiro que eu vi foi O Grande Golpe, um filme bem mecânico e seco de, como o nome diz, golpe. Uns seis ou sete caras se juntam pra fazer um assalto ao dinheiro das apostas de uma pista de corrida de cavalo. O filme é todo picotado, apresentando primeiro a vida de cada assaltante - grande parte deles com vidas normais em paralelo ao assalto - e logo o planejamento e a execução do plano. Lembrou um bocado o recente Onze Homens e um Segredo (que já é refilmagem, por sinal). Pelo que eu li nos extras, o filme é bem considerado pela crítica por, já naquela época, desarrumar a cronologia da história. E é interessante mesmo ver o assalto várias vezes sob o ponto de vista de cada um dos assaltantes, coisa que foi usada recentemente pelo Jackie Brown de Tarantino, naquela cena da loja de roupas. O final é frustrante. Da porra, mas frustrante.


Umas duas semanas depois eu assisti ao A Morte Passou por Perto, que é do caralho! Segue o estilo noir do outro só que carregando mais ainda no contraste e nas sombras. A história é espartana: um boxeador em fim de carreira se apaixona pela dançarina de um clube noturno e ambos são perseguidos pelo dono do clube. É contado do final pelo boxeador, esperando pela dançarina numa estação de trem, o que me lembrou um pouco O Pagamento Final.

O que mais impressionou foi mesmo a fotografia, com todas as cenas criando altos contrastes entre claros e escuros, câmera cuidadosamente posicionada pra criar as mais belas composições. Ainda mais no terço final do filme, uma perseguição imensa por uma região mais industrial de Nova Iorque, filmada como se fosse um labirinto de ruas desertas sem saída, paredes altas e sólidas dos prédios, uma infinidade de janelas cegas e tetos vazios, coisa de Kafka mesmo. Genial.


Alguns dias depois peguei Glória Feita de Sangue, mesmo não sendo muito fã de filmes de guerra. Pra minha surpresa, foi o melhor dos três. O maior avanço que vi nesse em relação aos outros dois foi a construção dos personagens. É sobre esse sargento francês que comanda um batalhão na Paris sitiada pelos exércitos alemães de 1916, se não me engano. Aí um coronel convence outro (falando de promoções e tal) a mandar esse batalhão atacar uma posição estratégica tomada pelos alemães, mesmo sabendo das mínimas chances de vitória. O sargento, o grande humanista do filme, faz de tudo pra tirar essa idéia da cabeça do coronel mas o ataque acontece, mais da metade do batalhão morre e muitos recuam. Pra botar moral no batalhão, o coronel manda escolher três soldados para serem fuzilados pelo recuo. Aí é que começa o filme mesmo, com o embate entre o sargento e os coronéis, a política dentro do exército, o julgamento dos três soldados, o drama deles.

Desde o começo do filme eu os diálogos são afiadíssimos, principalmente os do sargento, vivido por Kirk Douglas, com críticas cortantes à matança da guerra. Além dele, imenso desde o começo do filme, todos os outros personagens vão crescendo muito ao longo da história, os dois coronéis na tentativa de fazer o jogo político da guerra, os três soldados encarando seus dramas. E o final é uma coisa do outro mundo de bela, numa cena de cortar o coração com uma alemã prisioneira cantando prum batalhão francês num bar e o sentimento iminente de morte pesando na cabeça de todo mundo. Chorei que só a porra nessa cena.

Li nos extras que o filme ficou vinte anos banido de muitos países da Europa e que não podia ser exibido a tropas americanas, pela contundência da crítica à guerra. Também por isso, mas muito também pela excelente direção dos atores, condução da história e cuidado especial com a mise-en-scène (da mesma forma que nos outros dois, a fotografia e os posicionamentos de câmera são magistrais) é que eu digo: o cara é foda.

escrito por Chico Lacerda | 01:44 |


domingo, março 07, 2004  

O irmão de minha mãe

Do corpo dele pouca coisa me lembro. Sei apenas que era alto, olhos castanhos - quase amarelos - e bochechas avermelhadas. Do resto, tudo me vem à memória. Sei que era meu tio, irmão de minha mãe, professor de alguma dessas ciências humanas. Vivia me levando para Universidade. Eu ficava lá, na sala dos professores, brincando com quem aparecesse. Eu, menino pequeno, menino carregado pelo tio, apaixonado por ele como se fosse meu pai. E ele, meu tio, meu tio que carregava o sobrinho, era como se fosse meu pai.

O irmão de minha mãe, meu tio, quase um pai, meu pai. Ele foi embora. Eu não sei o que foi, ninguém me diz o que foi, mas ele foi. Eu não sei para onde, não entendo isso, mas ninguém me diz para onde ele foi. Ninguém quer me dizer por que ele foi.

Eu dou um grito desesperado de angústia no meio da noite: eu quero o meu pai! E chega a minha mãe, aquela louca, não não ele não é seu pai é só seu tio fique calmo meu pequeno venha venha vamos dormir.

Eu pergunto todos os dias por que ele foi, para onde, com quem, por qual motivo, por que não pôde falar comigo antes de ir... E, principalmente, por que fazem mistério do que me angustia. É que eu, ai deus, eu só quero ter o coração tranqüilo.

Sei que ele me deixou uma carta. Já a encontrei rasgada. Encontrar aqueles pedaços de papel pelo chão me fez uma ferida tão, mas tão grande. Tudo o que eu consegui juntar não dizia muito, mas era sobre alguma coisa maior:

“(...) ah, menino! Mas esse povo já não me pertence, esse cheiro dessa chuva já não me agrada. Essa necessidade de estar eu já não sinto. Ah, menino... Ah,menino! Essas estradas devem mostrar alguma coisa, alguma cor. Essas estradas todas que constroem por aí tem de mostrar qualquer coisa de caminho. Ah, meu menino, porque eu não tenho mais vida por aqui, eu só tenho resto nesse chão. E eu vou embora. Vou sem mágoa, sem nada: vazio. Seco.

Fica tranqüilo que eu tô sempre pensando em você. Olhando você, de longe, sem você saber. Se não me deixam ficar por perto, não tem problema, eu fico perto estando longe.

Um abraço vivo e demorado e pra sempre,

tio Hélio”


Eu não sei o que aconteceu. Mas alguma coisa grandiosa deve ter sido. E eu ando todos os dias, indo pra Universidade, olhando para todos os lados. Não sei se o reconheceria. Mas sei que ele está por perto... E que tem olhos castanhos – quase amarelos, bochechas avermelhadas e é alto. Meu tio Hélio, o irmão de minha mãe.



escrito por Júlia | 11:20 |
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