O Sítio
Aquele velho projeto de fazer um fãzine com os amigos...


quarta-feira, dezembro 17, 2003  

Absinto

Num instante eu estava em casa, no outro já entrava pela porta da boate. Todo o miolo - vestir-me, entrar no carro, atravessar meia cidade, estacionar – tudo isso foi feito no piloto automático, com a mente vazia. A insistência de Ângelo no telefone havia por um instante quebrado a casca da apatia e eu sabia que qualquer pensamento, leve que fosse, me levaria vencido de volta ao quarto.

Fumaça, luzes, baixo e bumbo retumbantes, muita gente e nenhum rosto conhecido. Encolhi-me na mesa mais isolada e deixei meus olhos vagarem sem realmente ver nada, desfocando-os para desfocar a mente. Era um estado mental que eu tinha aperfeiçoado naturalmente nas últimas semanas. O ritmo forte da música, longe de atrapalhar, até ajudou no desprendimento, soando grave dentro da cabeça e do peito, a repetição pondo o organismo no mesmo compasso.

Era isso ou percorrer o interminável calvário de pensamentos: eu pensava nela, muito; revia na cabeça todo o enredo, cada cena nos mínimos detalhes; repassava todos os diálogos, gestos e expressões, procurava a verdade e a mentira em cada um deles; procurava o ponto exato onde tudo começara a dar errado e ela, por covardia, havia-me ocultado; chafurdava na minha própria miséria, sentindo fundo no peito o vazio que ela deixara, a falta de sentido pressionando as têmporas de fora pra dentro. Logo o organismo passou a proteger-se e eu terminava essas sessões de tormento dentro de uma espessa e bem-vinda dormência, a cabeça vazia de pensamentos, o coração de sentimentos.

Ângelo chegou com Ana algum tempo depois. Abraçaram-me carinhosamente e ele mostrou-me o que chamou de a solução para todos os meus problemas: discretamente, dentro da bolsa de Ana, repousava uma garrafa de Absinto, verde retinto, vinte e dois reais numa inesperada promoção. Pedimos bebidas apenas para usar os copos e logo estávamos brindando à green fairy.

A primeira dose desceu-me em contraste: à suave doçura na boca seguiu-se o impacto da forte onda energia percorrendo a garganta e indo abrigar-se no estômago. Contraí a boca numa careta, percebendo que Ângelo e Ana faziam o mesmo. Sorri instintivamente para os dois, a energia espalhando-se pelos membros e atingindo a cabeça na forma de uma leve flutuação. Pela primeira vez na noite senti a alegria de estar ali, ao lado deles.

Uma segunda dose seguiu-se, ainda suavemente doce na boca mas sem causar outra reação perceptível ao resto do corpo. Ana tomou apenas metade do conteúdo do copo, vamos devagar, depositando-o na mesa com mais uma careta. Peguei seu copo e virei rapidamente o restante da dose, rindo do olhar de preocupação que ambos trocaram. Não durou muito, pois logo Ângelo juntou-se a mim na risada a serviu-nos mais uma dose. Ofereceu também a garrafa ao copo de Ana, que nos mediu com um sorriso de desconfiança no canto da boca. Aceitou o desafio com um aceno de cabeça e assim desceu a terceira dose.

Levantamo-nos para dançar. A pista estava menos cheia e formamos os três um pequeno círculo, o som martelando-nos poderosamente, ecoando dentro da cabeça, dentro do peito, guiando nossos corpos em seu compasso. Cada vez que eu fechava os olhos o mundo parecia flutuar, luzes coloridas, batidas sólidas, sangue pulsando na minha cabeça, todos no mesmo ritmo. Abria-os subitamente, temendo cair, e gargalhava com vontade da ilusão. Passamo-nos a garrafa algumas vezes na pista, cada um tomando um grande gole e logo voltando à catarse, o corpo já autônomo em sua resposta à música.

Ana descansou na mesa durante algumas músicas e logo voltou à pista, recusando mais um gole do Absinto, estou enjoada, gritou. Eu também estava. Espocou ao invés disso o flash da câmera fotográfica na minha cara, deixando-me completamente cego por alguns longos segundos. O mundo oscilou mais uma vez, o branco vivo dando lugar a gradativos tons de amarelo, alaranjado e vermelho, delineando a silhueta das pessoas à minha volta. Pisquei os olhos várias vezes enquanto o chão e as imagens estabilizavam-se, sorrindo bobamente do efeito. Os dois gargalharam ante minha reação e eu gargalhei junto.

Peguei a câmera, tirei uma foto dos dois e logo em seguida virei a câmera para o meu rosto e bati mais uma foto. Desta vez dei alguns passos cegos pela pista de dança, tentando equilibrar-me no convés oscilante com uma alegria quase infantil. Antes do mundo voltar ao normal choquei-me com alguém e logo depois levei um empurrão pelas costas, que jogou-me ajoelhado ao chão. Ângelo intercedeu entre mim e o agressor, largo e alto, bloqueando as luzes coloridas da pista de dança. Eu só consegui estender as mãos com a máquina fotográfica, riso solto, tentando pedir desculpas e fazê-lo entender a alegria que aquele simples efeito da câmera causava. A raiva no rosto do outro tornava-se uma ofensa ante tal possibilidade de felicidade.

A confusão dissipou-se rapidamente e antes de Ana tirar a câmera de minhas mãos, virei-a novamente em minha direção apertei o botão. Desta vez não caminhei mas corri pela pista de dança, cego e rindo de felicidade, os vultos passando velozes por mim, agora alarandados, agora vermelhos, agora quase conseguia ver-lhes a feição. Antes disso colidi violentamente com algo sólido, a cabeça sendo jogada para trás enquanto o resto do corpo continuava seu caminho original, impulsionado pela inércia. Caí de costas no chão, olhos inundados de lágrimas, nariz e boca em brasa.

A dor foi chegando em ondas cada vez mais intensas, fazendo parte do meu rosto pulsar. Tentei sentir com as mãos o estrago, mas a dor impediu-me de sentir qualquer coisa além da umidade quente que escorria pelas minhas bochechas e queixo. Fechei os olhos e continuei deitado, as vozes ao meu redor misturando-se à dor pulsante - ou talvez fossem às luzes pulsantes que também acompanhavam meu sangue pulsante, dentro e fora de minha cabeça agora. Mas logo a escuridão no mesmo ritmo pulsante da música foi tomando os amarelos e vermelhos, aproximando-se, das margens para o centro, e logo engolindo-me por completo.

Acordei algum tempo depois, deitado num dos bancos acolchoados que margeavam as paredes da boate. A festa parecia estar chegando ao seu ápice, a pista mais cheia do que nunca, vi com o canto do olho. Tentei sentar e fui logo tomado por uma onda de tontura, a dor voltando a latejar intensamente no meu nariz e boca. Ângelo e Ana apararam-me pelos braços e me puseram encostado na almofada, oferecendo-me um copo d’água. Abri a boca para bebê-la, sentindo as crostas de sangue coagulado romperem-se nas bordas dos lábios. A água tinha gosto de sangue e logo cuspi tudo no chão, enjoado.

Os olhares de culpa e pena que Ângelo e Ana trocaram deram-me um nó na garganta e logo eu estava chorando entre soluços, eu estraguei a noite de vocês, eu estraguei completamente a noite de vocês, repetia. Levantei-me cambaleante para ir ao banheiro, recusando a ajuda de Ângelo, mas no meio do caminho mudei de idéia e dirigi-me à saída da boate.

Não havia mais o que fazer: o vazio já tomava conta do meu peito, dificultando a respiração e levando-me aos bamboleios infinitos de auto-flagelação pelas mesmas cenas, gestos, expressões e palavras, examinando minuciosamente cada uma em busca da rachadura primordial, aquela que deu início ao lento porém inexorável processo de deterioração do relacionamento. E tinha que haver uma ou então nada mais tinha sentido.

Vacilei assim pela rua até chegar à sua paralela, passarela da classe média alta com suas calçadas antigas apinhadas de mesas e cadeiras dos melhores estabelecimentos da cidade. Recebi olhares tortos de todos os lados e arreganhei os dentes sangrentos, orgulhoso da minha camisa branca e da larga mancha vertical de sangue escurecido que a percorria do pescoço à cintura; do meu nariz inchado e disforme, do cabelo desgrenhado. Senti orgulho da minha mais profunda dor e caminhei – tentando sem sucesso disfarçar a embriaguez – ostentando-a para os olhares de espanto e desprezo. Eu sinto, por isso sou melhor que vocês. Eu sinto.

Sentei no melhor bar e exigi a presença de um garçom. Eles entreolharam-se confusos e um deles dirigiu-se à parte interna. Foi comunicar ao gerente o pequeno incidente que sentou-se nesta mesa mas eu espero, tenho todo o tempo do mundo, posso encarar de volta eternamente todos estes olhares de ultraje com meu sorriso sangrento de dentes trincados. Eu sinto, por isso sou mais forte que vocês.

Logo o garçom voltou e gentilmente pediu desculpas, disse que eu teria que retirar-me. Eu estava preparado para o contra-ataque, derrubar mesa e cadeiras, eu era forte, eu sentia, mas seu olhar de pena desarmou-me por completo. Voltei a chorar copiosamente e levei mais de meio minuto para levantar-me, ele aguardando atenciosamente. Balbuciei algumas palavras entre soluços, tentando explicar-lhe sem êxito o meu estado ao que ele bateu de leve em meu ombro, mulheres... Tentei abraçar-lhe em agradecimento mas ele manteve firme seu meio braço entre nós. Seu traje estava impecavelmente branco.

Cambaleei novamente entre as mesas e só fui parar de cambalear quando estava numa rua mais afastada, deserta. Sentei-me no meio-fio e chorei por não sei quanto tempo, cabeça apoiada nos braços, braços apoiados nos joelhos, lágrimas misturadas a sangue escorrendo da ponta do meu nariz e queixo em direção ao chão. Quando Ângelo e Ana finalmente me encontraram eu já estava dentro de uma espessa dormência, olhar perdido, a cabeça vazia de pensamentos, o coração de sentimentos.

***

Tenho as minhas três fotos daquela noite na parede do meu quarto, ampliadas, doze por quinze, e emolduradas. A primeira, a que Ana tirou, é a única que tem algum foco. Dá pra ver meu rosto de espanto, ela bateu a foto sem me avisar. Embaixo dela fica a segunda, também do meu rosto, mas já sem nenhum foco, só o contorno embranquecido pelo flash e manchas mais escuras no lugar dos olhos, do nariz e da boca. A terceira, a de baixo, é apenas uma mancha escura com manchas menores, amarelas e vermelhas, provavelmente as luzes da boate.

Sempre que alguém vem aqui e pergunta, conto toda a história daquela noite. Sempre arranco boas risadas das pessoas, dando um tom mais anedótico ao relato. Quando Ângelo e Ana estão presentes pra completar as lacunas, aí é que a história faz sucesso mesmo.

Servem também pra isso, as fotos, mas tem um valor bem diferente pra mim, bem maior. Representam uma época, como um diário da adolescência, ou um par de chuteiras da época do colégio, ou as fotos daqueles vários acampamentos com os colegas de turma da faculdade. As minhas são essas três fotos aqui na parede, uma embaixo da outra, minhas.

escrito por Chico Lacerda | 01:17 |


sexta-feira, dezembro 12, 2003  

Soul Coughing - Ruby Vroom

Quem me conhece sabe como é raro eu manter minha primeira opinião sobre os discos que ouço. Quando Fábio me perguntou algumas semanas atrás o que eu tinha achado do mais recente Belle and Sebastian, descartou minha opinião negativa sobre o disco comentando essa minha idiossincrasia. Na mosca: já há alguns dias venho ouvindo e gostando muito dele, depois de algumas semanas sem ter ido com a cara.

Caso mais representativo é o do álbum Ruby Vroom, do Soul Coughing. Comprei-o lá em 1998 e nunca fui com a cara dele nesse tempo todo. Gostava muito, mas muito mesmo, de duas músicas: True Dreams of Wichita e Janine, mas era só. As outras eu não conseguia nem ouvir inteiras. Chatas, amelódicas, repetivitas. Ouvi o disco inteiro nesses quase sete anos apenas umas dez vezes, sempre tentando fixar minha atenção, me interessar, gostar de mais alguma música, mas nunca com sucesso. Os caras que fizeram aquelas duas músicas do caralho ficaram só nelas mesmo, enchendo o disco com mais doze merdas.

Mas a confirmação da tendência citada no primeiro parágrafo veio recentemente: passei algum tempo organizando algumas coletâneas de música para tocarem no churrasco do meu aniversário e as duas músicas citadas do Ruby Vroom, as boas, estavam no meio. Isso despertou novamente a minha atenção prá banda e algum tempo depois eu dei uma última chance ao disco. Foi nessa chance que ele me pegou.

Inês tem uma teoria muito boa pra isso, baseada na doutrina Messiânica: ela me contou que passou seis meses morando nesse novo apartamento, com piscina e tudo, mas nunca nem se ligou na piscina. Aí um dia ela acordou com uma vontade louca de tomar banho de piscina, coisa que ela não fazia há tempos, e se deu conta que ela tinha uma piscina no prédio dela. Desceu, tomou banho de piscina, brincou com as crianças do prédio e me disse que foi só nesse dia que ela finalmente ficou espiritualmente pronta pra usufruir de algo que já tinha há algum tempo, a piscina, no caso. Não sei se é exatamente espiritual o meu caso, mas é uma boa teoria.

O disco é uma mistura muito boa de várias coisas: as músicas tem ao mesmo tempo uma levada bebop de jazz e batidas fortes do hip hop, ressaltando bateria e baixo na mixagem, principalmente bateria, e dando uma grande energia à seção rítmica, como na música eletrônica dos anos 90. O vocal é na maioria das vezes monotônico ou pouco-tônico, como o do hip hop, cantando/falando frases com muito mais força nas imagens que evocam do que no conteúdo emocional. Guitarra e violão são usados discretamente, ora dando um tom levemente melódico e melancólico a certas seções das músicas, ora funkeando o todo, assim como teclados e samples de sons concretos (trânsito, gaivotas, multidões, desenhos animados, mensagens de secretária eletrônica, sopros e corinhos de jazz etc.), que levam parte das composições para o campo do experimentalismo e da música concreta e tornam mais palpáveis as grandes narrativas das letras. Tem um pouco de Beck, Cake, Gomez e The Avalanches, embora tenha precedido, neste primeiro disco de 1993, todos eles.

Já as duas músicas que eu gostei desde o início - e que continuam sendo as melhores apesar da novidade das outras - são completamente diferentes: na primeira o ritmo e a melodia são dados pelo baixo, lento e quase onipresente na mixagem, repetindo o mesmo riff de de quatro notas até o final da música em cima de frases solitárias ricas em imagens do vocalista. Já na segunda é só do violão o ritmo, mais batido do que tocado, em cima de um vocal feminino cantado através de uma secretária eletrônica e sob o vocalista em seu momento mais melódico do disco. E só.

escrito por Chico Lacerda | 00:59 |


terça-feira, dezembro 09, 2003  

Helena

Naquele dia, daqueles ali, qualquer um daqueles, Helena soube como acordar-se. E acordou-se na hora mais certa. Não havia relógio naquele lugar, mas era a hora certa, no minuto certo, o momento exato pra quem quisesse acordar-se naquele dia. Qualquer um daqueles. E ela sabia disso. O sono fora tão tranqüilo como a sensação de término de um trabalho, de um dever cumprido. A consciência confortavelmente acolhida. E logo chegou a ela um cheiro de café novo, feito na hora. Sim, hoje era dia de sacudir o mundo inteiro.

Então ela vestiu-se do que havia de mais imenso dentro dela. Era o mais abrangente sentimento desse mundo, o que acreditou ser de pura seda. Nunca vestira-se tanto de si mesma.

Helena desfilava em frente ao espelho como quem não acreditava que aquela seda, aquele salto, aquela expressão matinal de disposição lhe pertencessem. Pelo menos menos naquele momento Helena sentiu-se digna de estar no espelho sendo refletida pra quem quisesse olhar.

Ela, que não tinha relógio, soube a hora exata de se levantar. A hora perfeita para se colocar um vestido de seda. Sentir cheiro de café. Encarar tudo o que havia dentro dela através de um espelho. Ser digna de apalusos, no entanto sem platéia. Helena, acreditando estar viva, passou pela janela. Era tudo do que ela não precisava.

E, como que hipnotizada, de uma hora para outra, interrompeu o desfile, desceu dos sapatos altos, e passou a observar algum ponto da paisagem. Eram só prédios. Prédios altos, de tendência arquitetônica igual. Prédios quase idênticos. Dezenas deles, cheios de pequenas janelas guardando pequenas vidas, pequenas rotinas. Helena sentiu-se angustiada.

Helena, que naquele dia - qualquer que fosse o dia - acreditava ser de pura seda, achou que estava disposta a uma grande coisa. E desfilou, sentiu um cheiro extraordinário de café. Foi então que percebeu que estava a viver só para si. E que cada pequena janela só tinha como visão do mundo outras pequenas janelas. Janelas iguais, tudo o que lhe era possível enxergar. Sentiu-se deprimida, tirou os sapatos e já nem ligava mais pro vestido de seda.

Helena era só mais uma rotina de vida dentro de uma pequena janela num mar de edifícios da cidade.

escrito por Júlia | 23:30 |
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