O Sítio
Aquele velho projeto de fazer um fãzine com os amigos...


segunda-feira, novembro 10, 2003  

O Duplo

Neto acordou-se ao som do despertador batendo-se nervoso ao lado da sua cama na mesma hora de todas as manhãs. Após alguns minutos de briga mau-humorada entre sono e obrigações, rastejou sonolento e resmungante pela extensão da cama até a janela. Os dedos já mais despertos brincaram com a tranca, abrindo e fechando-a enquanto o sono teimava em apoquentar-lhe o juízo. Impaciente, levantou-se de um pulo e escancarou os dois lados da janela.

Geralmente era o golpe final no sono: a luz opaca porém penetrante do quintal dos fundos com a grande goiabeira a alguns dias de florescer, o antigo poço de pedra, as portas de madeira do depósito subterrâneo, a cerca da mesma madeira, o grande tapete de mato verde atravessando tudo até as paredes negras de fumaça estática de onde provinha a luz. Era vida atraindo vida e ele ainda não havia conhecido sono que não sucumbisse ao persuasivo chamado.

Mas neste dia foi diferente. Não foi no primeiro, mas no segundo olhar que ele viu. Uma hora não estava lá, e na outra estava, como mágica: um menino como ele, no pequeno espaço entre a cerca e a parede de fumaça. Os cabelos escuros escorridos como os dele, o avental vermelho igual ao dele em cima da camisa de tecido cru igual à dele. Da distância em que estava não conseguia distinguir a cor dos olhos que cruzaram com os seus, mas sabia que eram de um profundo verde como os dele próprio. Estava vendo a si próprio.

Levou instintivamente as mãos ao olhos, aos ouvidos, tentando negar fisicamente a realidade que fazia os pensamentos dentro de sua cabeça incharem e darem-se nós uns nos outros. Era como se fosse uma cópia, um duplo, um impostor mas não apenas isso, pois nesse caso não seria ele e sim uma cópia, um duplo, um impostor. Ele sabia desde o momento em que seus olhos haviam-se cruzado com os do outro que era ele próprio e era isso o que mais fazia sua cabeça doer.

Não saberia dizer quanto tempo teria ficado encolhido na cama se não fossem os gritos da Tutora para pôrem-lhe de pé. A ineficiência dos gritos clamando por sua presença havia trazido a tempestade em pessoa ao seu quarto, jogando-lhe da cama para o vaso d'água e dali para a cadeira onde estavam suas roupas (calção e camisa de tecido cru, avental vermelho) e dali para a porta, onde ele postou-se atordoado e ereto, esperando que ela inspecionasse o quarto. Esperou na verdade o grito de exclamação dela ao ver o outro Neto do lado de fora, mas nada aconteceu.

Mal comeu do café da manhã e passou todo o primeiro período de lições com um embrulho por dentro, olhando sem querer olhar, sempre que tinha oportunidade, através de alguma janela. Foi só durante o período de meditação na sala do orbe que acalmou-se mais.

A sala ficava no primeiro andar da casa e era toda de madeira. Tinha janelas em cada uma de suas quatro paredes e era vazia à exceção de algumas almofadas no chão e do altar onde se depositava o orbe. Sentou-se nas almofadas em frente ao altar e deixou os olhos perderem-se na superfície da pequena esfera, para além de sua fina camada de vidro transparente, penetrando naquele indefinido sem cor que atraía o olhar.

Toda a sua memória para trás era na casa da Tutora. Sabia que não havia nascido ali mas não lembrava de nenhum antes, apenas da mesma rotina diária das lições teóricas e das lições práticas, da meditação e dos trabalhos. E o engraçado era que por mais distantes do orbe que fossem as atividades, como as lições de geografia e biologia, ou as lições de luta, ou os reparos na casa, ou ainda a feitura das compotas; por menos que tivessem a ver com ele, Neto sempre conseguia obter mais algum conhecimento sobre o objeto através delas.

Era assim que sabia que, de alguma forma, estavam todos dentro do orbe. Tudo, na verdade. A pequena esfera estava ali na sua frente mas ele próprio estava dentro da esfera, junto com tudo mais que existia. Era mais ou menos como ele próprio, que estava dentro daquele mundo mas contendo aquele mesmo mundo dentro dele. Estas semelhanças entre ele e o orbe às vezes o assustavam.

Era assim também que ele sabia que estava ali unicamente por causa do orbe, que a esfera pertencia a ele por direito, de alguma forma. Ou talvez fosse ele quem pertencesse ao orbe por direito. O fato é que no princípio havia tratado o orbe com reverência e mesmo com reservas, como a própria Tutora o havia ensinado a fazer. Mas conforme crescesse a familiaridade e conhecimento entre ele e o orbe, já olhavam-se como velhos conhecidos e Neto havia até manuseado o objeto sem medo algumas vezes, longe dos olhos vigilantes da Tutora.

Foi assim que introduziu o objeto num dos bolsos do seu avental quando a Tutora gritou-lhe do andar de baixo para checar as compotas e trazer algumas para a casa. Um calafrio subiu e desceu-lhe a espinha várias vezes ante o pensamento de pôr os pés fora de casa e só a segurança do contato com o objeto conseguiu pôr-lhe em movimento.

Parou no umbral da porta de entrada, distraidamente observando com os dedos as lascas de madeira soltas em suas laterais enquanto os olhos hesitantes checavam a área. Saiu pulando e gritando os versos da Canção da História, tentando afogar os próprios pensamentos que alarmavam-no a cada pulo que o afastava da casa. Foi fingindo essa distração que contornou a casa e por pouco não tropeçou nas portas de madeira do depósito subterrâneo onde estavam guardadas as compotas.

O pensamento veio-lhe mais alto que os versos da canção: se fosse o duplo, era ali que Neto esconderia-se e aguardaria a melhor hora para... para fazer o que quer que ele estivesse ali para fazer. Sentiu ainda mais forte que o pensamento que o duplo realmente estava além daquelas portas, aguardando qualquer passo em falso seu, e só mais um apertão no orbe dentro do bolso o impediu de correr.

Chutou algumas pedras dentro do mato e agachou-se para observar qualquer coisa, disfarçando o susto e o medo. Pensou nas compotas que tinha que checar, pensou no depósito subterrâneo escuro e úmido, pensou no duplo aguardando-o com olhos astutos. De um pulo e um resmungo, correu até a goiabeira subindo-lhe os galhos com agilidade e tentou empurrar a obrigação para o quarto do esquecimento. Pôs a mente na goiaba que crescia dia após dia na ponta do galho mais alto e decidiu que era o dia de tirá-la.

A atenção de cenho franzido completamente voltada a seu objetivo não percebeu quando o peso do orbe dentro do avental dirigiu-se mais e mais à entrada do seu bolso a cada balançada que ele dava em seu rastejo pelo galho, pendendo perigosamente alguns metros acima da negra boca de pedra do antigo poço. Foi só quando sentiu a ausência do peso do objeto em seu avental que sua mão jogou-se para baixo, tentando agarrar a pequena esfera que despencava do bolso em direção ao poço, as pontas dos dedos raspando levemente em sua superfície mas voltando vencida ao galho, para prevenir sua própria queda.

Enquanto o pequeno círculo sem cor da esfera aproximava-se do grande círculo negro da boca do poço logo abaixo veio-lhe a súbita percepção da estação seca, da falta de água no poço, do fundo pedregulhoso e escuro pronto para espatifar o orbe em mil de pedaços e quem sabe o que mais a partir disso.

Pela segunda vez no dia Neto conteve os sentidos tentando negar fisicamente a realidade, apertando os olhos com um gemido interno e agarrando-se ao galho, esperando o mundo à sua volta e ele próprio espatifar-se em mil pedaços à imagem do orbe destruído.

Pela segunda vez no dia foram os gritos da Tutora que tiraram-no de dentro de si mesmo, gritando-os com fúria de uma das janelas da sala de meditação pelo desaparecimento do orbe. Desceu aos tropeções da árvore e correu em desespero cego, a cabeça quente de tentar aceitar a gravidade do acidente que causara. Só pensava em esconder-se, fugir daquilo quando pulou a cerca de madeira e adentrou na densa cortina de fumaça negra e luminosa que a circundava.

Se os ensinamentos sobre o orbe pareciam ser os mais importantes em todas as lições que recebia, indiretos que fossem, os que seguiam-se era as advertências em relação aos limites da cortina de fumaça, e estes eram bem diretos. Desde quando se lembrava, a mais constante fonte de ameaças da Tutora era a quebra destes limites, que descrevia com vividez e terror as medonhas conseqüências que moravam além da cerca.

Em volta de toda a casa havia uma cerca baixa de madeira. Além dessa cerca havia apenas uma parede de fumaça negra que emitia uma luminosidade opaca durante toda a extensão dos dias, deixando de emití-la durante as noites. Conforme subiam, as paredes de fumaça curvavam-se em direção à casa, encontrando-se no alto, uns dez metros acima do topo dela. Era uma redoma negra que cobria este pedaço de terra que tinha sido a casa de Neto desde quando ele podia lembrar-se, separando-a do resto do mundo que ele só conhecia através das aulas de geografia.

Era onde Neto estava agora: num mundo espesso, negro e luminoso, onde era difícil locomover-se. Sentiu uma pontada de pânico ao perceber a dificuldade de respiração, como se o ar estivesse sendo sugado dos pulmões pela massa gasosa. Tentou voltar por onde havia entrado mas não sabia mais de que lado ficava, girando lentamente para as paredes líquidas de brilho variável, como que atravessadas por seres luminosos de origem desconhecida. Tentou ainda gritar, segurando as lágrimas, mas o som apenas ecoou dentro de sua cabeça.

Foi quando sentiu uma presença atrás de si, pesando-lhe os ombros como culpa, e tentou correr na direção contrária. A difícil locomoção foi amplificada pela falta de ar e Neto parecia apenas jogar-se para frente, desabando para os lados aos tropeços e equilibrando-se na consistência da própria matéria onde se perdia. Finalmente perdeu completamente o equilíbrio e desmoronou no chão lentamente, braços jogados para a frente, a mão colidindo com algo sólido, um toco ou...

Aferrou ambas as mãos a uma das estacas da cerca e puxou o resto do corpo para fora da parede de fumaça, sentindo a frustração quente da presença que o perseguia bem atrás de si, mas agora fora de seu alcance. Respirou avidamente por alguns minutos, pulmões, coração e mente voltando ao compasso.

Não sabia mais o que pensar, a cabeça já quase acostumada à dor do espanto, quando chegou à conclusão que deveria desistir. Confessar tudo à Tutora e entregar-se às conseqüências que fossem-lhe cabidas. Não tinha o aparato necessário para lidar com os absurdos do dia e agora percebia isso, cansando-se de tentar entender e muito menos controlar a confusão em que se metera.

Mas viu que não passaria da porta de entrada da casa e quis pela terceira vez no dia (ou seria a quarta?) negar a realidade. Controlou-se, porém, e olhou firmemente nos olhos do duplo, que olhava-o de dentro da janela de seu quarto, cara de sono, como se houvesse acordado havia apenas alguns momentos. No mesmo instante o duplo arregalou os olhos e abaixou-se para fora de seu campo de visão.

Diferente da repulsa que sentiu no primeiro contato com o outro, Neto foi tomado por uma onda de revolta ao ver o seu lugar tomado por ele. Deu alguns passos hesitantes sem saber o que fazer, as mãos contraindo-se em raiva, até que decidiu esconder-se no depósito subterrâneo. Agachado entre barris e potes de compota, raciocinou que teria que esperar um passo em falso do outro para então livrar-se dele de alguma forma. Conseguiu bolar três planos mirabolantes para tal empresa, adormecendo no meio do quarto, exausto que estava.

Acordou assombrado, ouvindo os gritos do duplo do lado de fora cantando os versos da Canção da História, o descarado! Era a chance que Neto esperava, mas nenhum dos planos veio-lhe a cabeça e tudo que ele pôde fazer foi agarrar o facão de lâmina afiada usado para preparo das compotas e agachar-se abaixo da porta do depósito, pronto para retalhá-lo em quantas fatias fosse necessário assim que pudesse.

Os gritos aproximaram-se mais e mais das portas do depósito mas repentinamente cessaram. Neto hesitou, temendo que o duplo houvesse desconfiado da sua presença e aguardasse-o do lado de fora, com um truque tão sujo quanto o seu. Mas logo ouviu seus passos em disparada, para longe do esconderijo, e decidiu que não poderia perder esta chance. Escancarou as portas do depósito de um pulo apenas a tempo de ver o duplo subindo com agilidade pelos galhos da goiabeira.

Observou sem reação a cena familiar até que o outro atingisse o topo da árvore, completamente esquecido de Neto, atenção de cenho franzido completamente voltada para a goiaba quase madura na ponta do último galho. O duplo começou a rastejar em direção ao objetivo e só a visão daquele peso deformando seu avental tirou Neto do transe. Ele correu mesmo sem conseguir acreditar que aquele peso que chegava mais e mais perto da abertura do bolso do avental do duplo era o orbe e agarrou-o no último momento antes da conhecida esfera adentrar as profundezas do antigo poço.

Não parou de correr, ouvindo agora ao longe os ganidos do duplo, provavelmente agarrado ao galho mais alto da goiabeira esperando o mundo espatifar-se em mil pedaços e alguns segundos após a Tutora alardear aos gritos o desaparecimento do orbe já depositava-o no altar, entregando-se com felicidade ao pior dos castigos que o aguardasse nas mão dela. Ainda conseguiu ver ao longe, de uma das janelas da sala de meditação, o duplo metendo-se em desespero nas cortinas de fumaça negra.

Silenciosamente desejou-lhe boa sorte.

escrito por Chico Lacerda | 09:46 |


quinta-feira, novembro 06, 2003  

Deu certo.
Blur – Think Tank (2003)

E Graham Coxon deixou o Blur. As viúvas do britpop espernearam, berraram, choraram, mas não teve jeito. Era o fim de uma era. O trauma da saída de Bernard Butler, ex-guitarrista do Suede, ainda reverberava nos inconscientes delas. Estaria o Blur em situação semelhante?

O primeiro acerto do Blur, nesse sentido, foi não tentar substituir o guitarrista. (O Suede, ao contrário, tratou logo de encontrar um clone de Butler). Mesmo a guitarra de Coxon sendo uma das marcas registradas do som da banda, ela é insubstituível. Portanto, nada de tentar copiá-la: simplesmente esqueçam que ela existiu. No decorrer de Think Tank, as guitarras, quando existem, não têm o papel que costumavam ter. E, por incrível que pareça, não fazem falta. Talvez a única exceção seja o primeiro single, “Crazy Beat”, que, aliás, é a pior faixa, e nada tem a ver com o restante do disco (culpa do mala Fatboy Slim).

Think Tank tem o mesmo cheiro que o Lodger, de David Bowie. Lembremos um pouco da história: em 79, Bowie lançava o último disco da sua “Trilogia de Berlim”, e, para muitos, o mais acessível deles. Ao contrário dos dois álbuns anteriores, repletos de faixas instrumentais (que não eram canções propriamente ditas), o Lodger incorporava o experimentalismo dos álbuns anteriores em verdadeiras canções de rock. Foi em Lodger, também, que Bowie se aproximou da “música do mundo”, especialmente da África.

De volta para 2003. Não foi por acaso que o Blur gravou Think Tank no Marrocos. O álbum é repleto de instrumentos típicos da África, como a orquestra de Out Of Time. Não faltam, também, sintetizadores e batidas eletrônicas, mas estes sempre foram parte do som da banda. O que muda, aqui, é a ênfase na “cozinha”, especialmente nas linhas de baixo de Alex James, que, ao que parece, precisou da saída do guitarrista pra provar que é um grande baixista (mesmo já tendo mostrado isso várias outras vezes, como em Song 2).

Ao mesmo tempo, Think Tank tem baladas que nada deixam a dever às dos discos anteriores, como a supracitada “Out Of Time”, ou “Good Song”, só que a maioria delas extrapola os limites da formação guitarra-bateria-baixo-e-eventual-piano. A exceção mais notável, contudo, é a faixa que fecha o disco, My White Noise; aliás, um dos pontos altos do disco.

O Blur bebeu nas influências certas. Conseguiu diversificar seu som, sem perder a essência, e, ao mesmo tempo, sem se afundar no autoplágio, como seus conterrâneos do Suede ou do Oasis. Think Tank é o registro de uma grande banda em fase de mutação, atirando para todos os lados, e, surpreendentemente, acertando os alvos. O britpop está morto, e muito bem enterrado. Para a nossa sorte.

escrito por Haymone Neto | 01:44 |
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