O Sítio
Aquele velho projeto de fazer um fãzine com os amigos...


sexta-feira, junho 27, 2003  

Uma Onda no Ar - Helvécio Ratton

Um grupo de jovens moradores do aglomerado da Serra, um conjunto de favelas de Belo Horizonte, resolveu no incício dos anos 80 montar uma rádio que atingisse toda a comunidade e um pouco mais, levando, além de música de qualidade, mensagens de conscientização e dando voz ao povo. Foi alvo de inúmeras batidas policiais e prisões, dada sua a ilegalidade. Ganhou a simpatia de muita gente e, algum tempo depois, a mídia, como exemplo de projeto social bem sucedido. É uma grande história, mas, e se essa história fosse dada para a Rede Globo dirigir?

O problema não é tão grave assim, mas esta hipótese dá uma boa idéia dos maneirismos encontrados no filme. A ação é cadenciada, clara - e isso é bom - mas há uma vontade exagerada de se fazer entender, de explicar tudo nos mínimos detalhes para que não haja dúvida do que se quer dizer. A montagem, os enquadramentos, o ritmo, a estrutura, tudo parece ter sido tirado de uma novela da Globo. A cena de um debate sobre o preconceito racial numa escola de classe média entraria para um episódio de Malhação sem tirar nem pôr. Simples, didática, fácil.

Felizmente a força da história consegue sobrepujar estes embaraços e, surpreendentemente, usá-los a seu favor. Estes elementos tão familiares à cultura de massa brasileira trazem consigo uma grande capacidade de comunicação com o público e isso é uma grande coisa, já que o tema a ser comunicado é de maior relevância: a exclusão social da vida na favela, a importância do estímulo a uma consciência no povo, a força dos meios de comunicação de massa. Em comparação com Cidade de Deus - pela temática quase idêntica - a mensagem consegue ser passada de forma bem mais íntegra, dada a maior atenção ao drama dos personagens - mesmo sendo um drama muito mais próximo do melodrama do que de qualquer outra coisa - em detrimento do cinema de diversão do outro.

Já outros maneirismos não conseguem passar incólumes, como um certo maniqueísmo na construção dos personagens que mostra uma força policial muitas vezes sádica e, pior, os radialistas sempre como exemplo de comportamento, à exceção de Roque, o mais interessante do grupo de amigos. Cenas reais da rádio nos títulos finais do filme dão uma idéia da extensão do problema.

Da mesma forma a atuação é insatisfatória, com alguns ótimos atores (Babu Santana como Roque, de longe o melhor; Adolfo Moura, como Zequiel; Benjamim Abras como Brau e Hamilton Borges como Baiano) e uma maioria de atuações artificiais, caindo no velho vício do cinema brasileiro de textos recitados. Fosse só problema do roteiro, teríamos atuações regularmente problemáticas, o que mostra a importância da interpretação do texto, ou seja, da boa atuação. Engraçado como da mesma forma que Lázaro Ramos se viu em dificuldades tendo que forjar um sotaque gaúcho em O Homem que Copiava, alguns diálogos aqui tinham expressões como "uai!" e "fi' d'uma égua" enxertadas em frases genuinamente cariocas.

Mas, no final das contas, os problemas todos parecem pequenos em comparação com a capacidade de comunicação do filme, não através de um estilo naturalista de aproximação mas, ao contrário, tão artificial quanto a realidade acompanhada por milhões de brasileiros todos os dias através da TV. Houve uma diminuição - intencional ou não - do cinema como arte seguido de perto por uma amplificação do cinema como meio de comunicação o que, dada a ideologia por trás do filme, é não só desculpável mas até mesmo louvável. Resta uma distribuição ampla e irrestrita - incluindo aqui a televisão e principalmente ela - para que o filme atinja a amplidão de público merecida.

escrito por Chico Lacerda | 01:37 |


segunda-feira, junho 23, 2003  

O Homem que Copiava - Jorge Furtado

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Ilha das Flores: uma introdução

Por pouco caio no erro de citar Jorge Furtado como um filho da desconstrução no cinema. Em 1989 este diretor de cinema de Porto Alegre lançou o curta Ilha das Flores, que percorreu o mundo recebendo elogios e prêmios, muitos prêmios. O curta parte da idéia simples de analisar o porquê do dono do lixão localizado na Ilha das Flores, arredores de Porto Alegre, separar a melhor parte do lixo para seus porcos e só depois permitir a entrada no lixão das pessoas que vivem no entorno.

O filme é (des)construído genialmente a partir da análise e síntese de idéias e conceitos básicos, sempre seguindo a trajetória de um tomate - do plantio até o lixão final - num estilo didático que tem muito de filmes educacionais e telecursos, sempre misturando as mídias entre realidade filmada, animações ilustrativas, diagramas etc. Começa nos apresentando seu Suzuki, um japonês plantador de tomates. Define então o conceito e japonês, de onde é levado a definir o conceito de ser humano e diferenciá-lo dos outros mamíferos. Então analisa o que são tomates e porque seu Suzuki planta tomates, partindo para explicar a origem do dinheiro e seus usos e seguindo a viagem do tomate até o supermercado, até a casa de uma família, até o lixo e até o lixão, ramificando sempre suas definições, como num complexo hipertexto. É a partir da sínteses de todos esses conceitos que ele começa a chegar em contradições como porque o tomate que foi rejeitado pela mãe da família é disputado pelas mulheres e crianças do lixão e porque o dono do lixão prefere dar o tomate a seus porcos, e não a outros seres humanos, e a explicar essas contradições, através do tom cada vez mais desgostoso da narração de Paulo José.

É simples, didático, original, inteligente e eficiente e pela época de produção, coloca Furtado muito mais perto de um pai do que de um filho da desconstrução cinematográfica.

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O Homem que Copiava

Entre Ilha das Flores e O Homem que Copiava, Jorge Furtado dirigiu um número de outros curta-metragens (destaque para o divertidíssimo Sanduíche, onde a meta-linguagem é levada ao extremo), escreveu roteiros para diversos programa da Rede Globo (Dóris para Maiores, A Comédia da Vida Privada, Brava Gente) e dirigiu um único longa-metragem, Houve uma Vez Dois Verões. Enquanto isso a desconstrução nos filmes foi virando moda: a linha do tempo passou, cada vez com mais freqüência e naturalidade, a ser desmontada e remontada de acordo com leis outras - os relatos (Clube da Luta, Eleição, Cassino, Cidade de Deus) e memórias de um personagem (Desconstruindo Harry, Lucia e o Sexo, Cães de Aluguel), os caprichos da própria história (Pulp Fiction, Depois da Chuva, A Estrada Perdida, O Doce Amanhã) - que não a cronologia. É quando Furtado volta com o estilo que lhe deu reconhecimento no cinema, mas não apenas no nível estrutural.

André é um personagem em pedaços: operador de fotocopiadora, muito de seu conhecimento vem de linhas e pedaços dos textos que ele fotocopia - um pedaço de um soneto de Shakespeare, um pouco da história dos presidentes dos Estados Unidos; gosta de desenhar e de fazer colagens, que cobrem as paredes do seu quarto - pedaços de revistas, de cópias, de desenhos; é apaixonado por uma garota de um prédio próximo, que observa de longe através de uma fresta na janela dela e ângulos de seu espelho (genial a reconstrução do quarto dela através dos retalhos de visão, com ecos de Hitchcock no tema - Janela Indiscreta - e no design - Saul Bass). E é assim que ele nos conta sua história, em pedaços, indo e voltando no tempo, animando suas lembranças de infância com desenhos e colagens, lembrando inclusive as viagens multimídia de Guel Arraes (O Auto da Compadecida, Caramuru).

E é uma história sobre dinheiro, basicamente. Não milhões de dólares, mas dinheiro pra poder tomar um café sem comprometer a passagem do ônibus, dinheiro pra dar uma saidinha à noite, pra comprar um presente pra a mãe e paquerar. É nessa busca por um dinheirinho a mais para ajudar na paquera com Sílvia - a garota da janela do outro prédio - que André descobre que a nova fotocopiadora colorida da loja consegue copiar dinheiro razoavelmente bem e resolve tentar, ato que trará inúmeras conseqüências para ele e outros envolvidos como Marinês, colega de trabalho, Cardoso, amigo de Marinês e até a própria Sílvia.

O estilo picotado de André para contar a história funciona maravilhosamente bem, criando um universo e uma história complexos e ao mesmo tempo claros. O único porém é a atuação de Lázaro Ramos. Depois de uma grande atuação e outra um pouco menor (Madame Satã e Carandiru), ele parece não ter sido uma boa escolha para o protagonista. O incômodo é maior na narração - uniforme, sem emoção e muitas vezes sem conseguir acompanhar a velocidade das imagens - mas a atuação na tela também não satisfaz, com um sotaque gaúcho falho e uma timidez excessivamente artificial e esforçada. Não que as outras atuações sejam naturalistas, longe disso, mas os atores estão plenamente confortáveis dentro de seus personagens, com destaque para Luana Piovani, irrepreensível. Com Lázaro acontece o contrário: o esforço da atuação está sempre visível, e isso incomoda.

Um dos grandes trunfos do filme é explorar os mais diferentes gêneros cinematográficos sempre com os pés no chão. Temos a comédia assumida na apresentação da vida de André e na cena da inauguração do bar, e são poucas as comédias que têm diálogos tão reais e sinceros. Temos o romance de Sílvia e André, o drama de Sílvia dentro de casa, a comédia novamente com Marinês e Cardoso em lojas e hotéis. Até o gênero policial é visitado durante um assalto e mais tarde, em alguns acertos de contas.

São esses acertos de contas as exceções que confirmam a regra. São os únicos pontos onde o filme parece tirar os pés do chão, dispondo de soluções insatisfatórias e irreais para a trama que criou. Em especial uma cena de perseguição e pulo de uma ponte e um plano envolvendo um bujão de gás, que destoam completamente do mundo real do restante do filme. Felizmente após isso Furtado consegue retomar a direção leve e franca e nos reaproximar dos personagens, que são o que ele tem de melhor a oferecer.

Ao final fica clara a intencional acessibilidade e apelo popular do filme - numa assumida vontade de divertir - que só o talento de alguns (o já citado Guel Arraes, Laíz Bodanski) consegue atingir sem afetar outros pontos como franqueza, interesse, relevância e respeito à inteligência da audiência. Ele consegue.

escrito por Chico Lacerda | 15:27 |


quarta-feira, junho 18, 2003  

As Confissões de Henry Fool - Hal Hartley

Hal Hartley é um dos grandes cineastas independentes americanos, de bem antes do cinema independente americano criar um nicho de mercado e começar a adotar uma fórmula de como deve se comportar um filme independente, mais conhecido como o jeito Sundance de ser, em alusão ao famoso festival de cinema alternativo. Já pelo meio dos anos 80 fazia filmes de baixo orçamento, com produção própria, total liberdade criativa e sensibilidade para lidar com o que há de mais humano e poético em seus personagens.

Um dos temas recorrentes em seus filmes é a inadequação e incomunicabilidade das pessoas em relação aos outros e neste não é diferente: Simon Grim é um gari que passou boa parte de seus vinte e tantos anos calado, observando. Vive com a mãe e irmã - que o consideram retardado - e seu desconforto e inexperiência quando entre pessoas é claramente visível. É quando surge Henry Fool, um escritor misterioso em vias de terminar sua obra-prima, que aluga um quarto da casa dos Grim. Henry é o total oposto de Simon: arrogante, espaçoso e cafajeste, invade o espaço de todos sem pedir licença. Era de se esperar que a convivência de ambos os alterasse de modo positivo, com Henry ensinando a Simon a caminhar entre as pessoas sem medo e Simon ensinando a Henry a percebê-las, e isso realmente acontece, mas não como um fim do filme, e sim um meio.

A alteração em Simon se dá de modo rápido: Henry entrega a ele um lápis e um caderno e diz "Toda vez que você quiser dizer algo e não tiver pra quem, escreva!". Logo Simon aparece com o caderno completamente preenchido com poesias e Henry, impressionado com o conteúdo, resolve "testar" o material em algumas pessoas, com resultados diversos mas sempre extremos: uma garota muda começa a cantar após ler uma poesia; a irmã de Simon tem a menstruação adiantada em uma semana; uma mulher acusa o material de pornográfico, aos gritos; mais à frente, alguém comete suicídio. Pouco a pouco a obra de Simon toma tal proporção que em certo ponto até o Papa o menciona em um discurso.

Uma das coisas mais interessantes nos filmes de Hal Hartley, fazendo parte deste também, é o efeito intimista e humano que ele consegue atingir usando de uma maquinaria ultra-realista que lembra muito os contos de fadas: as interpretações, longe de naturalistas, lembram mais o que se convencionou chamar de bressonianas, principalmente nos dois protagonistas, atuando pausadamente e com olhos geralmente fitando o vazio; os próprios personagens baseiam-se nos estereótipos do gênio anti-social/gênio arrogante e conseguem transcendê-los durante o filme; eventos extraordinários são tratados como naturais (a muda cantando, o banho de água fervente, o alcance que a obra atinge); a fotografia mostra uma realidade afiada, de linhas retas e cores fortes e limpas, vista recentemente em filmes como Retratos de uma Obsessão e A Agenda e clipes como Daysleeper, do R.E.M. A junção dessas características dentro de enquadramentos estratégicos consegue extrair e amplificar o que há de mais poético e melancólico na história e nas imagens, bem na linha da poesia do cotidiano das telas de Edward Hopper.

(Comento a seguir alguns pontos do enredo e talvez seja interessante para alguém que não assistiu e pretende fazê-lo não ler.)

É então que temos a inversão dos papéis. Simon ganhou fama, abriu-se para o mundo através de sua obra e agora pertence a este. Sua vida se torna grande demais para a abrangência do filme e é posta para fora da tela. Seguindo a coerência da obra do diretor, o foco recai sobre Henry, agora deslocado dentro de uma vida ordinária de casamento, filho e trabalho assalariado, após o total fracasso artístico. É onde o filme perde um pouco, pois fica perceptível o diretor guiando a história à mão pesada em direção a seus objetivos, levando a situação de Henry ao extremo para que Simon, através de seu filho, possa vir ajudá-lo, quando então a história fecha-se redondinha, com Simon retribuindo tudo que obteve a partir do pontapé inicial de Henry, numa simbólica troca de identidades.

Mas o filme termina de forma belíssima, na ambígua cena de Henry correndo pela pista de pouso, não se sabe se para o avião ou de volta para Simon, o que Fernando provavelmente chamaria de "toque de filme de arte", no pior sentido possível. E teria razão, não fosse toda a base que os personagens montaram ao longo do filme, dando coerência a ambas as escolhas de Henry, seja abraçando a tão desejada fuga do cotidiano e ordinário, seja percebendo finalmente o singular e extraordinário em sua vida, coisa que havia mostrado a Simon logo no início do filme. E que Hal Hartley vem nos mostrando, filme após filme.

escrito por Chico Lacerda | 13:32 |


segunda-feira, junho 16, 2003  

Durval Discos - Anna Muylaert

Aviso aos navegantes: a resenha a seguir analisa o enredo do filme, sendo então recomendável não lê-la quem ainda não o assistiu e pretende fazê-lo.

Geralmente não há o que se falar, tecnicamente, do cinema nacional. Grande parte dos novos cineastas brasileiros mostra um grande domínio da linguagem cinematográfica - montagem, movimentação e posicionamento de câmera, fotografia, trilha sonora - sabendo usá-los com maestria para atingir os efeitos desejados, muitas vezes sobrepondo os efeitos da própria história com este virtuosismo técnico, como que dizendo "Olha como eu sei filmar bem!". No Durval Discos, o problema é outro: os bons elementos da história são enterrados embaixo de uma falta de articulação que salta aos olhos, a enorme distância entre o que se queria mostrar e o que se mostra ficando evidentes a cada cena.

Uma abordagem realista da história é sugerida por uma fotografia realista já no inventivo plano seqüência dos créditos e nas cenas seguintes, mas isso logo é negado ao entrarem em cena os personagens. O diálogo da primeira cena faz questão de mostrar, muito pouco sutilmente, que o enfoque é no lado estranho, pitoresco e cômico destes seres do subúrbio de uma cidade grande: Durval é o trintão dono da loja do título, vive no passado, só comercializando LPs, ainda mora com a mãe e não tem namorada. Ele é estranho e nós ainda vamos rir muito dele e de seus clientes igualmente estranhos que são alvo de um humor bastante duvidoso nesta primeira parte do filme.

Mas, surpresa, tudo muda com a entrada de Kiki em cena. A empregada recém contratada passa alguns dias fora e deixa sua filha, Kiki, com Durval e Carmita. É com a gradativa aproximação dos dois com a menina - de longe a melhor atriz do filme - que o lado mais humano e menos caricato destes dois personagens emerge. As cenas e diálogos se tornam leves e verdadeiros. Estamos vendo a vida real na tela, em detrimento do humor forçado e preconceituoso da primeira parte, e isso é muito mais interessante.

É quando temos a reviravolta na trama e novamente a abordagem do filme muda completamente: ao perceber que está prestes a perder Kiki depois de descobrir que ela é fruto de um seqüestro, o vazio na vida de Carmita se torna evidente e a obsessão toma conta dela. E é nesta terceira parte que a falta de articulação da diretora se torna mais evidente e mais frustrante, pois fica claro o grande desfecho que o filme poderia ter tido em mãos mais hábeis. Fica cada vez mais forçado o fato de Carmita conseguir convencer Durval a não levar Kiki à polícia. Nós sabemos da dominação implícita que Carmita exerce sobre o filho - e isso é mais do que razão para ela conseguir dissuadí-lo da idéia - mas o filme simplesmente não consegue passar isso. Consegue, finalmente, atingir um clima claustrofóbico e doentio num crescendo de loucura muito bem administrado, culminando no quadro surrealista que é o quarto com o corpo, o cavalo, Carmita balbuciando e Kiki vestida de bailarina pintando as paredes de sangue.

É mais um ponto alto que fica evidente exatamente por causa dos muitos pontos baixos, frutos de uma visível falta de recursos materiais mas, principalmente, da falta de um domínio sobre a linguagem cinematográfica, até porque falta de recursos nunca foi determinante de filme ruim. É um filme de boas intenções e ótimos "como poderia ser" mas que, infelizmente, ficou nos medianos "como realmente foi".

escrito por Chico Lacerda | 16:46 |


domingo, junho 08, 2003  

Matrix Reloaded - Andy e Larry Wachowsky

Aviso aos navegantes: a resenha a seguir analisa o enredo do filme, sendo então recomendável não lê-la quem ainda não o assistiu.

Confuso, foi assim que eu saí do Matrix Reloaded. E não foi uma confusão legal como a da Estrada Perdida ou de Genealogias de um Crime. Não fosse o primeiro filme, sairia duvidando da habilidade dos diretores em organizar qualquer enredo um pouco mais complexo.

O oráculo diz a Neo que tudo já está traçado, que as escolhas já estão feitas e que na verdade ele está ali apenas para saber o porquê destas escolhas que ele tomará. Queria eu ter um oráculo ao meu lado durante o filme, pois em boa parte dele eu não sabia muito bem o porquê das coisas. A única coisa que fica clara - e ainda assim nem tanto -, é que Zion está para ser atacada pelas máquinas e que eles precisam das naves para defederem-se. Enquanto isso, Morpheus acredita que Neo pode acabar com toda essa luta de uma vez por todas conseguindo... bem, conseguindo fazer algo que eu não sei bem o que lá na matriz.

Depois de um passeio pela estilosa Zion (se aquele povo vivia na matriz, onde é que eles aprenderam a dançar daquele jeito estranho?), a nave de Morpheus parte e Neo vai procurar o oráculo. Acho que a grande sacada deste filme foi a personificação da matriz ainda mais como um programa, através daquelas backdoors que levavam a outras partes dela. Mas foi uma idéia completamente mal desenvolvida, em grande parte porque a matriz desse filme é totalmente diferente da primeira. Enquanto a antiga era realmente o nosso mundo - e isso causava muito da estranheza de percebermos que não era real - a deste filme é perceptivelmente fruto de cenários de um filme com estética dark, cyberpunk e fashion (vide os ambientes sombrios e vazios da reunião logo no começo do filme ou do encontro com o oráculo num pátio de Nova Iorque ou dos prédios invadidos no final, muito diferentes do prédio invadido no final do primeiro filme). Não houve, como eu acho que deveria ter havido, uma diferença marcante entre os locais ‘mundo real’ e os locais ‘programa’ (backdoors, sala do arquiteto) da matriz e - e isso é mais sério ainda - algumas vezes eu senti dificuldade até em dizer se os personagens estavam dentro ou fora matriz, coisa que no primeiro filme era totalmente clara.

Outra boa idéia desperdiçada foi a existência de outras pessoas que eram programas dentro da matriz, como o japonês, o oráculo, o Merovingian. Longe de desenvolver essa fonte para inúmeros e riquíssimos questionamentos, a idéia foi aceita com idiferença por Neo e depois nada mais foi dito ou desenvolvido.

Afora esses pontos negativos mais abrangentes, consigo lembrar de vários pra-quê-issos: qual era a importância daquele piloto negro da nave? Por que ele foi desenvolvido a ponto de mostrarem até sua mulher e seus parentes, se só o que ele fez foi duvidar de Morpheus umas duas vezes e seu personagem continuou bidimensional e raso, apesar de tudo? Pra que aquela conversa entre Neo e o prefeito de Zion na sala das máquinas? O que isso acrescentou ao filme? Por que transformaram o agente Smith em inimigo da matriz se tudo o que ele fez ele faria mesmo sendo ser apenas um agente da matriz (ou seja, outra boa idéia sem nenhum desenvolvimento)?

Muito se falou sobre as cenas de ação e eu concordo que a sequência da auto-estrada foi soberba em adrenalina e as cenas de luta são realmente as melhores as quais tive a oportunidade de assistir. Já com relação à luta contra o milhão de Smiths tenho que discordar: a partir de determinado ponto, só o que havia ali eram bonecos digitais lutando. Quanto mais Smiths chegam mais os bits e bytes se tornam aparentes e mais some qualquer tipo de tensão e emoção da cena. E isso não foi nem o pior: o atestado de incompetência na direção de cenas de ação foi aquele final onde eles têm que cortar a energia de um prédio pra desarmar o alarme de outro pra abrir uma porta e passar em 5 minutos e... porra, eu não entendi nada daquilo! Se você tem um plano complicado e perigoso para executar, a tensão vem quando o espectador percebe que algo não está dando certo. Mas se o espectador não entendeu bulhufas do que é pra fazer ou pra que, não tem tensão! Isso é básico! Deveriam ter dado essa sequência pro Steven Sonderbergh de Onze Homens e um Segredo dirigir.

E isso nos leva à cena do arquiteto, onde as grandes revelações do filme parecem estar sendo feitas. Foi frustrante ficar ali assistindo Neo cada vez mais surpreso com as revelações e não poder compartilhar disso. Entendi que aquela era a sexta matriz que tinha sido criada, depois de cinco fracassos anteriores, e que todas as vezes surgiu também um grupo de rebeldes e uma Zion e também um predestinado. Mas qual era a decisão que Neo tinha que tomar? Que duas portas eram aquelas? Pra onde levavam? Por que ele escolheu aquela que ele escolheu?

Tudo isso deu uma boa idéia do grande filme que Matrix Reloaded poderia ter sido, se dirigido pelos Wachowsky do primeiro. Boas idéias e enredo eles tinhas - até demais - mas pareceram não saber o que fazer com tanta coisa.

Não sei se por causa de tudo que o arquiteto disse de forma obscura e que eu não entendi, ou se por causa daquele ninguém de cavanhaque que tentou matar Neo e foi o único sobrevivente no Zion, ou ainda se por influência daquele outro filme de realidades falsas, O 13o Andar (muito bom, por sinal), mas ao final do filme fiquei com a impressão que Neo era apenas mais um programa da matriz e que o mundo real - de Zion e tal - era também outra matriz. Pois pensem: se em todas as outras cinco matrizes, todos começaram a perceber a matriz e sair para o mundo real, uma boa solução para esse problema seria criar duas matrizes, uma dentro da outra. As pessoas que acordassem, então, aceitariam a segunda matriz como mundo real, por mais diferente que fosse do mundo delas. E mesmo que um dia elas percebessem que o novo mundo real também era uma matriz, isso retardaria mais o colapso da matriz. Pareceu-me uma boa idéia e uma boa solução para o enredo dos filmes, até agora. E o fato de Neo ser um programa? Sei lá, pareceu-me de bom tom dar um ar de Blade Runner ao filme.

escrito por Chico Lacerda | 21:10 |


terça-feira, junho 03, 2003  

Belas Canções Sob o Céu da Califórnia por Ana Maria Bahiana

Este ano eu fiz duas compras importantes. As duas, pela primeira vez na minha vida. As duas, essenciais para minha existência como residente de Los Angeles. Comprei um carro. E um toca-CD para carro.

O carro é o Bakana: essa é a placa dele. Eu queria que fosse Bacana. A moça no balcão do Automóvel Clube me fez soletrar duas vezes, jurar que não era palavrão. Depois me deu a má notícia: bacana, com c, já existia um na Califórnia, em San Francisco. Essa diáspora brasileira. Quando saiu da fábrica, em 1994, ele era simplesmente um Acura Integra GS-R branco que eu dirigia um tanto cautelosa, num esquema de lease. Agora é meu, é o Bakana, exatamente do meu tamanho, exatamente como eu gosto e preciso: pequeno, veloz, potente, nervoso. E com uma acústica perfeita.

O que me levou à segunda compra, a minha, digamos assim, bandeira territorial: um toca-CD Alpine para seis discos. Essa é a cápsula de descompressão da vida no sul da Califórnia, onde se pode dirigir por 5 mil milhas e não sair de Los Angeles, onde tudo fica pelo menos a 20 minutos (se o trânsito ajudar) de distância e onde não é possível honrar mais que dois compromissos por dia útil. Mas esse é o modo pessimista, copo-meio-vazio, de encarar essa experiência tão integralmente americana. O outro modo é assim: o teto solar retraído, o azul do céu da Califórnia sobre a cabeça, o sol indo para o Japão, lá no Pacífico prateado depois das montanhas de Santa Mônica, cheiro de laranja no ar, o horizonte infinito do Vale de São Fernando sob as rodas. Michael Stipe canta: "Se você quiser voar/Mulholland Drive/suspensa no céu/vá à beirada do despenhadeiro e olhe lá para baixo/Não tenha medo/Você está vivo."

Você está vivo e dirigindo em Mulholland Drive. O carro é seu desenho no espaço, sua nave urbana, seu país pessoal numa nação de individualistas, numa cidade de Babel. Se eu não pudesse negociar a estrada eu não poderia viver em Los Angeles. Se eu não tivesse a minha música eu não poderia negociar a estrada. Gosto desse paradoxo. Gosto de não ter de ouvir música porque tenho que ouvir música, mas ouvir música porque sem ela não consigo conceber a própria vida, porque a música é a própria vida, em código. Essa liberdade estrepitosa me deixa ouvir coisas sem ordem e sem nexo, sem ganchos e sem pautas, sem datas e sem gavetas. Nada é moderno, nada é antigo, tudo existe em perfeita harmonia no país ambulante do Bakana. É o zen de LA: nirvana pelo preço de um tanque de gasolina.
Como no meu Alpine só cabem seis discos por vez, tenho de exercer uma disciplina razoavelmente férrea: o oceano da minha discoteca abarrotada não cabe aqui. Imaginei uma fórmula: um disco novo, um disco antigo, um disco world (aliás, detesto a classificação - para mim é só um truque para me remover do eixo pop anglo-saxão), um disco do R.E.M., um disco para ouvir de manhã, um disco para ouvir de noite. Mais ou menos. Por aí. Agora que o outono termina e a Califórnia fica mais linda do que nunca - para inveja de todo o resto do país, sepultado sob o gelo do inverno prematuro - estes são os discos que eu tenho ouvido:

The Divine Comedy/Liberation (Setanta)

Uma das vantagens desta minha geração pós-anos 60 é que o tal conflito de gerações, pelo menos no que se refere à música, não existe mais. Existe diferença de gosto, mas isso é outra coisa. A música que meu filho Bernardo ouve e a que eu ouço é, em essência, a mesma - os detalhes é que mudam. Já a música de meus pais - o swing, o bolero, o samba-canção - eu só fui compreender depois de negar, depois do dilúvio rock-and-roll, quando afinal se chegou ao Ararat nas águas baixas dos anos 70, quando tudo, exausto, confluía.

Bernardo me apresentou Neal Hannon, que se esconde atrás do nome Divine Comedy. Hannon, para simplficiar, é um gênio. Quando, em 1993, compôs, arranjou, produziu e interpretou (tocando quase todos os instrumentos, inclusive um cravo bem-temperado) esse disco de estréia, Hannon - inglês, filho de um pastor protestante, me contam - tinha recém-completado 21 anos. Um desses jornais ingleses para quem as décadas duram seis meses chamou o disco de "a maior estréia dos anos 90" e disse que Hannon "é os Pet Shop Boys se eles fossem contemporâneos de Mozart".

Hannon é mais cool e mais interessante que os dois epítetos - ele é essa ave rara, o cultor pop erudito, mais interessado na vertente obscura que passa por Syd Barrett, Tim Buckley, Jacques Brel e Scott Walker (e os Beatles de Penny Lane, For No One, Strawberry Fields) do que nas guitarradas. De seus três discos este é meu quindim - pelo cravo, pelo frescor das cançonetas como Your Daddy's Car e sobretudo por uma adorável adaptação de um longo e difícil poema de William Wordsworth, Lucy.

Musicar textos literários é tarefa que já derrubou muitos dos nossos melhores, devastados entre intimidação e arrogância. Hannon, contudo, não é um estranho no ninho - em seu segundo disco, Promenade, ele incluiu uma música que contém apenas os nomes de seus escritores favoritos; o terceiro, Casanova, se baseia nos textos do libertino veneziano. A música de Hannon abre o texto de dentro para fora, como o amor do aficionado - e quando sua bela voz canta que Lucy era "bela como uma estrela/quando apenas uma brilha no céu" sua arte faz uma elegante reverência contemporânea à arte de Wordsworth.

R.E.M. /New Adventures in Hi Fi (Warner)

Vá se saber por que eu tenho essa obsessão com o R.E.M. Mas a verdade é que, fora os Beatles, eles são a única banda da qual amo, exatamente, tudo. Ouso dizer que o R.E.M. é, para mim, a banda mais importante dos Estados Unidos nas últimas décadas - sim, eu sei que você está pensando no Nirvana, e eu adoro o Nirvana, mas o Nirvana foi uma faísca, enquanto o R.E.M. é uma fogueira, e eu, particularmente, estou mais interessada no desafio da sobrevivência e da longevidade do que na saída fácil da vida breve e fulminante.

Um amigo me contou que "os fãs" estão devolvendo este disco aos baldes às lojas. Coitados. Dos fãs, eu digo. Será que mais uma geração caiu nas garras da arteriosclerose do "classic rock", cujo sintoma mais grave é essa mania de ouvir apenas o que já foi ouvido antes, e sempre cobrar de seus artistas favoritos que eles não mudem nunca?

Eu, por mim, recomendo a qualquer um - de 16, 21, 30, 45, 55 anos - que, ao menos uma vez por semana, escute algo que jamais pensaria escutar. E, certamente, algo que fuja dos padrões daquilo que as gravadoras determinaram ser "apropriado" para sua faixa etária - um ouvinte de 16 anos tem tanto a se beneficiar com uma audição de A Nod Is as Good as a Wink, dos Faces, quanto um de 55 do disco do Kula Shaker. É um santo remédio, o equivalente a uma corrida no calçadão, uma hora de malhação, uma partida de basquete: o suficiente para manter os ouvidos flexíveis, o cérebro desentupido, o coração palpitante e prevenir a instalação - muitas vezes precoce - do reumatismo estupidificante do classic rock.

Das muitas coisas de que gosto nesse novo disco do R.E.M. a sensação de imediatismo, de flagrante, de idéias em movimento, é algo que me interessa particularmente. Gosto das novas texturas da música do R.E.M., mais angulosas e ácidas, especialmente a partir de Monster. E, desde que Michael Stipe resolveu começar a escrever coisa com coisa, ele tem ficado muito mais interessante. Quando ele diz, ao descrever uma discussão entre namorados, em New Test Leper, que permaneceu "calado durante cinco comerciais/sem mais nada a dizer", todos nós sabemos exatamente do que ele está falando.

Electrolite, a canção sobre Mulholland Drive, é a derradeira faixa de Hi Fi. Difícil ouvir uma vez só: como Michael, eu também tenho meus dias de Jimmy Dean, Martin Sheen, Steve McQueen, Hollywood a meus pés, o céu da Califórnia sobre minha cabeça.

escrito por Chico Lacerda | 22:31 |
 

Promenade - The Divine Comedy

Composto por doze faixas, acho que simplicidade é o melhor adjetivo para descrever o álbum Promenade, do Divine Comedy. Grande parte das faixas usa apenas piano e violino, além da bateria e do vocal às vezes grave, às vezes gritado, às vezes suave, sempre tocante de Neil Hannon, também compositor de todas as músicas e letras da banda e seu único componente fixo, uma vez que sua formação muda de acordo com a necessidade. As músicas são pequenas pérolas de no máximo quatro minutos, com arranjos que variam do barroco alegre de Vivaldi ao romantismo sombrio das sonatas de Beethoven ao excesso de Bacharach sem perder a unidade.

As letras merecem uma atenção especial, pequenos poemas de construção clássica girando sempre em torno do mesmo tema: a vida. Ou pequenos detalhes da vida, pequenos prazeres elevados ao status de razão de viver como na primeira faixa, Bath, sobre... o banho:

Rub-a-dub-dub
It's time for a scrub
So through clouds of steam
To a cracked and faded cream
Bathtub wanders frail


ou uma das melhores do disco, Going Downhill Fast, sobre o prazer da vertigem ao descer-se uma colina de bicicleta, onde Hannon constrói as estrofes a partir do número de borboletas no estômago do ciclista (as famosas butterflies in the stomach, figura de linguagem para a vertigem), ou o par A Seafood Song e A Drinking song, sobre os prazeres culinários e etílicos, esta última começando com o mais elegante arroto da história da música e seguindo as várias fases de embriaguez de um grupo de amigos, da alegre à mais alegre à pensativa à depressiva à chata à caindo de bêbado. Já um passeio de Roda Gigante é o tema de Don't Look Down,

She tells me it's alright
To open up my eyes
She holds onto my hand
And the clouds float by


onde depois de vencido o medo, ninguém menos que Deus aparece para perguntar o porquê daqueles prazers bobos, sendo logo contestado pelo nosso herói:

And without warning when we're almost at the top
The wheel that turns us all comes to a sudden stop.
The wind that's blown us dies a quick and painless death
The air gets clammy and we hold each other's breath.

We get the feeling that we're not alone in this
And then a God who really ought not to exist
Sticks out a great big hand and grabs me by the wrist
And asks me "why?" and I say "Well God, it's like this:

It may be arrogance or just appalling taste
But I'd rather use my pain than let it all go to waste
On some old god who tells me what I want to hear
As if I cannot tell obedience from fear.

I want to take my pleasures where and how I will,
Be they disgraceful or distasteful or distilled
And to be frank I find that life has more appeal
Without a driver who's asleep behind the wheel"

Then God decides that he has taken quite enough
Of all this atheistic tosh I'm spouting off
And so he calls upon his favourite angel choir
To sing of times when men were filled with christian fire.

But over-zealous angels flap their wings too fast
And cause the wind to blow and turn the wheel at last
And soon my feet are safely back on solid ground
And then I hear a voice say "Don't look down!".


Literatura em The Booklovers, cinema em When the Lights Go Out All Over Europe ('cause Doris Day could never make me cheer up / quite the way those French girls always did), lembranças de infância em The Summerhouse (do you remember? / sunday lunch on the lawn / daring escapes at midnight / costumeless bathes at dawn). O final é magistral, com a singela Ten Seconds to Midnight, onde um casal filosofa sobre a vida, as pessoas e o amor nos últimos dez segundos do ano, seguida pela espetacular Tonight We Fly, uma declaração de amor à vida:

And when we die
Oh, will we be that disappointed or sad
If heaven doesn't exist?
What will we have missed?
This life is the best we've ever had.


E depois de tudo isso, como não concordar?

escrito por Chico Lacerda | 22:16 |
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