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O Sítio Aquele velho projeto de fazer um fãzine com os amigos... |
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![]() sexta-feira, janeiro 31, 2003 Pelas Trilhas do Oriente – Jesualdo Correia O livro Pelas Trilhas do Oriente poderia facilmente cair em contradição. Escrito pelo filólogo Jesualdo Correia, ele se propõe a narrar aspectos escolhidos de viagens do autor, ao longo de vários anos, por regiões da Índia, China e mundo Árabo-islâmico. Ao tentar captar aspectos culturais - principalmente filosóficos, teológicos e metafísicos - destes três mundos, ele parte de uma base de longos anos de estudos teóricos sobre assunto e, ao se defrontar com os mundos estudados, repete sempre a mesma crítica aos métodos de coleta e análise de informações de todos os livros que ele usou como apoio para o estudo: desde a Idade Média, de quando datam as mais antigas fontes de estudo do autor, até hoje, os historiadores ocidentais insistem em categorizar, catalogar e analisar o Oriente, acadêmica e ideologicamente, usando as técnicas ocidentais. Com isso, percebeu o autor, erram feio o alvo, perdendo sempre a essência do tema estudado. Poderia ele ter caído no mesmo erro, mas não o fez. A narrativa é leve e descompromissada e longe de querer catalogar as religiões, filosofias e preceitos das culturas orientais, ela pinta sim impressões das mais diversas em torno dos mundos onde se moveu o autor, da estrutura social às artes, dos costumes à geografia e arquitetura, mesmo sendo seu maior interesse – que foi o objetivo central de sua viagem – a introdução aos sistemas filosóficos e teológicos dessas culturas, sem nem mesmo esquecer da narrativa da própria viagem e suas peculiaridades. O primeiro capítulo da primeira parte (Índia; as outras duas partes são China e mundo Árabo-Islâmico), por exemplo, narra simplesmente as primeiras impressões sensoriais que Déli, capital da Índia, causou nele. Mostra o choque destas com sua bagagem cultural ocidental e como as impressões vão se tornando, pouco a pouco, parte dele. A partir daí ele vai tomando contato com as várias facetas da cultura da Índia e foca sua meta nesta região: Benares, cidade considerada centro espiritual do país. O que mais choca nesse passeio pela Índia é perceber como, nesta cultura, o aspecto espiritual está intimamente entrelaçado na vida das pessoas e é objetivo primordial para a maioria delas a ascenção espiritual através dos mais variados preceitos e escolas, em grande parte derivados da mesma base filosófica. Já na China, que pareceu ser a região mais interessante, os interesses filosóficos e espirituais – uma coisa só para eles no final das contas – estão imutavelmente mesclados a todas as outras áreas, da gramática (que também inclui as artes gráficas, por causa dos ideogramas) à estética, da mecânica à culinária, todas sempre em busca do equilíbrio do interior consigo próprio e com o exterior. É visitado e criticado diversas vezes, pelas mais diferentes pessoas que o autor encontra na viagem, o fato do mundo Ocidental, a partir da cultura Grega, ter tomado o viés do pensamento racional e intelectual como objetivo primordial, inclusive base para todo o desenvolvimento filosófico, científico e metafísico, quando essa, para boa parte do mundo Oriental, é apenas uma, das mais insignificantes por sinal, das muitas ligações do homem consigo e com o mundo. Essa idéia permeia todo o livro e me remeteu ao conto Teddy, do livro Nove Estórias, de J. D. Salinger. Quando perguntado sobre qual seria a mudança que ele faria no sistema aducacional americano, Teddy, um garoto de seis anos dotado de um intelecto sobrenatural para a sua idade, responde que a primeira coisa seria ensinar todas as crianças a desaprenderem, a esvaziarem-se de tudo que tivessem aprendido com pais e com outras pessoas, e que só então recomeçassem a aprender tudo a partir da experiência, e não de conceitos. E, pelo que se vê, a situação é um pouco pior que isso, pois apesar de todo o conhecimento filosófico, científico e metafísico ocidental ter realmente sido construído sobre uma base racional e intelectual, grande parte das pessoas hoje em dia precisaria evoluir muito para atingir um nível racional e intelectual mínimo. O capitalismo criou o consumismo, que esvaziou nas pessoas até mesmo a busca pelo conhecimento através do intelecto, criando uma vazia ilusão de satisfação a partir de bens adquiridos através do trabalho ou meios equivalentes. Mas isso são divagações pessoais. Ao final o livro consegue, a partir dessas impressões, criar um quadro satisfatório das peculiaridades e relações desses povos com seu mundo interior e exterior. De seus sistemas de preceitos, filosofias, prioridades e objetivos. E esses vários pontos de vista acerca de questões universais são um ótimo princípio para a criação de uma visão crítica sobre nossos próprios pontos de vista. O que é sempre bom. escrito por Chico Lacerda | 23:10 | quarta-feira, janeiro 29, 2003 As Noites de Cabíria - Frederico Fellini O Neo-realismo, movimento cinematográfico italiano pós-segunda guerra mundial, foi um produto de seu meio. Com o país e, por consequência, a indústria de cinema destruídos - indústria esta que até poucos anos antes era a de maior produção da Europa - a produção de filmes foi parar nas mãos de pessoas interessadas em realmente fazer filmes, e não vendê-los. Com cenários naturais, atores não-profissionais, montagem simplificada e nenhuma opção estética, o cinema desta época foi usado como agente de denúncia social a partir de uma renovação temática que saiu dos melodramas e épicos bíblicos de outrora para abordar problemas do dia a dia do proletariado e camponeses. Roberto Rossellini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti filmaram o desemprego, a exploração e a guerra em filmes como Roma, Cidade Aberta, Ladrões de Bicicleta e A Terra Treme, entre outros. Apesar de não ter tido grande êxito junto ao público, foi um movimento que conseguiu ser visto e influenciou boa parte do cinema de países terceiro-mundistas da época, inclusive o Cinema Novo brasileiro, e tem como parente bem próximo o cinema iraniano dos anos 90. ![]() É um filme apaixonadamente centrado em apenas um personagem, a Cabíria do título. Ela é uma prostituta de meia-idade que vive nos subúrbios de uma Roma em reconstrução e ainda sofrendo com a crise pós-guerra. De personalidade extremamente infantil e inocente, ela usa seu gênio italianamente explosivo como defesa contra os percalços que a vida lhe impõe. A começar por seu namorado, que a joga no rio para roubar-lhe a bolsa e a deixa preplexa de incompreensão "Mas eu lhe daria todo o dinheiro, bastava somente ele pedir!!!". ![]() E é exatamente esse ânimo de acreditar na vida e nas pessoas, tombo após tombo, que é celebrado pelo filme, num final de uma delicadeza quase mágica onde, após o tombo derradeiro, Cabíria sorri, entre lágrimas, acompanhando uma troça de rapazes e moças que veio sabe-se lá de onde, renovando sua esperança na vida. Esta cena final, junto com a cena do teatro, onde Cabíria é hipnotizada, colocando para fora seus desejos mais íntimos, demonstram todo o realismo mágico que mais tarde viria a ser a marca registrada do diretor. E toda a força do personagem fica ainda mais evidente por causa do uso da realidade como cenário. A mise-en-scéne e a temática herdados do Neo-realismo, junto com um trabalho incrível de Giulietta Masina, então esposa do diretor, como Cabíria, tornam real esse tocante retrato de um personagem sofregamente humano. Será o Neo-humanismo? escrito por Chico Lacerda | 16:32 | porque eu havia prometido que "da próxima vez" voltaria a falar sobre poesia - ii. tem gente que gosta de ler poema caladinho. fechando o bico e deixando os olhos passearem no papel. eu também leio assim, mas nunca me segurei e sempre acabo lendo depois em voz alta. e foi nessas não-seguradas que muitos poemas cresceram para mim. é quando a palavra lá escrita, gravada na superfície branca, sabe que pode contar com o som da voz que a irá ler. mas sei, e noto, que nem sempre os poemas têm a intenção de transmitirem algo sonoramente, mas ainda assim, os poemas que não têm essa intenção (ou têm, veladamente) quando lidos em voz alta ganham para mim um novo rosto em minha voz, ou na voz de quem os lê. então, seria esse tipo de poema um poema elitista? poema não muito bem compreendido por quem possui deficiência auditiva? de que forma entenderia o poema "trem de ferro" de manuel bandeira, alguém que nunca pôde ouvir o som do trem que chega e parte? *** Trem de Ferro Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isto maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita força Muita força Muita força Oô... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho De ingazeira Debruçada No riacho Que vontade de cantar! Oô... Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era uma oficiá Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matá minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô... Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... *** porque lá estava eu no meio do mato, e ainda não era aquele sol de rachar, e ainda tinha aquele friozinho que só tem no meio mato, e o trem de ferro vinha chegando: café com pão, café com pão, café com pão... e dá-lhe o trem a correr solto, a pedir espaço, a comer chão. e tudo se colore e se abre e se dobra até o barulho do trem ficar lá longe: pouca gente, pouca gente, pouca gente... e como eu assimilaria isso se nunca tivesse ouvido o som que um trem faz? as palavras pareceriam soltas? a repetição pareceria sem propósito? pessoas que me lêem, eu fiquei triste. coisa de gente que é besta feito eu. agora me pergunto se isso compremete a poesia, logo essa poesia de bandeira que eu acho fantástica. sim, é bom saber que a gente pode ler isso e simular o trem de ferro, e embarcar junto com o manuel na estação. mas e se você nunca ouviu um trem, como que isso lhe soa? post abortado. abortado para experiências. combino o seguinte com vocês: vou procurar pessoas que possuam deficiência auditiva e mostrarei esse poema de bandeira para eles. já sei até onde irei. o objetivo? saber como é o entendimento desse texto para essas pessoas e em que formas essa sonoridade poderia ser transformada para melhor entendimento daqueles que não podem ouvir. simone viaja muito? pode até ser. mas é que agora há pouco eu achava poesia algo tão para todos, e essa idéia de exclusão acabou por pisar no meu pequeno juízo. então, vou parando por aqui, com mais uma promessa (estou pior que o pior dos políticos!) de que voltarei aqui para descrever minha experiência, e a experiência deles também. sendo assim, até a próxima. ...pouca gente, pouca gente, pouca gente... escrito por simone jubert | 01:12 | terça-feira, janeiro 28, 2003 porque eu havia prometido que "da próxima vez" voltaria a falar sobre poesia. eu sei. eu sei. faz tempo que não escrevo para o sítio. falta de tempo? que nada. falta de assunto? absolutamente não. desligamento temporário? de forma alguma, senhor. e o que diabos é então? o que diabos é essa falta de constância na produção de escritos dessa menina que estou dentro. talvez seja isso um dos meus maiores problemas com o jornalismo. ter que escrever quando não se quer escrever. é preciso sentir mais e escrever menos para se escrever mais. será que vocês me entendem? porque escrevendo menos para se sentir mais fará com se escreva mais para que outros sintam mais e escrevam mais porque outros, e um dia eles, escreveram menos. compliquei? se compliquei, me parece bom. às vezes, complicar é algo bom, sim. e acho que só aí já vai outro problema meu com o jornalismo (ainda mais com o jornalismo factual e diário): o mito de se ser claro, objetivo, conciso e coeso. "no mundo de hoje as pessoas não têm tempo e querem uma leitura rápida e de fácil digestão". e no fim, o que acontece é que as pessoas passam pelos fatos e apenas os enumeram. ninguém os vê. não há quem fite o olho do fato. e aí me falam que dentro do jornalismo existem as críticas e as crônicas, as colunas e todas essas subdivisões no ofício jornalístico, e que dentro delas e é nelas que as análises são feitas e que o jornalista ganha mais liberdade de escrita. e então, isso é jornalismo mesmo? bem, quando eu vejo uma dessas subdivisões sem um pingo de alma eu penso: é jornalismo sim. mas se eu me deparo com um texto diferenciado tendo a achar que aquilo não é mais jornalismo. que é qualquer outra coisa, menos isso. vejam bem, lá em cima desse pobre texto eu escrevi que havia prometido falar sobre poesia e até agora eu não disse uma única palavra a respeito de poesia. acontece que eu faço jornalismo. e o que isso tem a ver com a coesão do meu texto? tudo. cada linhazinha dessa aqui escrita tem toda uma problemática de quase 5 anos de faculdade de jornal. sabem o que é isso? poda contínua. limpeza constante no corpo do seu texto a ponto dele perder suas defesas imunológicas. texto tão limpo que chega a enfraquecer. meu texto está limpo? creio que não. e onde é que a faculdade de jornalismo entra aí? entra nas minhas reprovações nas cadeiras de redação para jornal e nas minhas notas baixas quando não houve reprovação. entra que a cada frase que termino, vem um copy-desk (hoje não existe mais essa figurinha nos jornais) imaginário pra querer cortar mais da metade do que já escrevi. e onde entra a poesia? primeiro eu tenho que parar de fazer essas perguntas cretinas no meio do texto, porque isso já está cansando - sim, foi dica do meu copy desk imaginário, que a essa hora deve estar tendo comichões por notar que isso tudo está indo longe demais. a poesia entra agora, quando eu abruptamente fecho essa história toda de jornalismo por aqui, deixando outra promessa escrota de que um dia volto a tocar no assunto. e eu que ia voltar a falar do manuel bandeira. acabei foi complicando sua entrada. tirando o brilho do seu nome embotado no meio de tanto "jornalismo", "jornalismo". então para ser mais limpa, para purgar um pouco tudo isso que escrevi (será que ainda é possível copy desk? ...perdão, perdão. esqueci que não era para colocar mais perguntas no meio do texto.), falarei de bandeira num próximo post. mas não um próximo como o próximo que foi esse - tão distante! é fechando este e começando um novo. como quem vira uma página de livro. você me acompanha? escrito por simone jubert | 23:49 | sexta-feira, janeiro 17, 2003 Montes Coloridos e Fotos da Lua, ou Como Eu Lembrei de Me Entregar Novamente Trabalho, estudos, obrigações começaram a se esgueirar sorrateiramente pela minha vida e quando prestei atenção, estava ouvindo música apenas no carro, aproveitando os vais-e-vens entre origens e destinos, um programa de escalonamento de tarefas e otimização de tempo rodando loucamente na minha cabeça para distribuir eficientemente cada segundo vago entre as tarefas a serem realizadas. ![]() Dormi na segunda música, é verdade, mas hoje pela manhã, num raro dia de folga, baixei e imprimi as letras do disco, fechei a porta do quarto para os ruídos matutinos do mundo e me entreguei à poesia emocional e auditiva de Mark Kozelek, para o mais sublime deleite do espírito. Exatamente como há 11 anos atrás quando, talvez pela primeira vez, passei um sábado esperando pelo crepúsculo para só então, à luz dourada da hora mágica, colocar o Out of Time, do R.E.M., e absorver deitado no chão a poesia e o *despair* de músicas como Low, Half a World Away e Country Feedback. ![]() Lord let it rain. Lord let it rain (forever). Lord let it rain. Don't want to ask you again. Drown my country. Drown everyone but me. So i can live peacefully. Musicalmente os dois são bem parecidos, lentos, tristes e por vezes desengonçados embora o Down Colorful Hill tenha uma tedência a épicos discretos e longos enquanto o Moon Pix é mais pontual, com músicas menores e de menor variação. Instrumentalmente o Red House Painters é mais restrito - mas nem por isso menos efetivo - centrando-se em bateria, baixo, guitarra e violão enquanto Chan Marshall dá bom uso também para piano, flauta, bateria eletrônica, distorções de guitarra e trovões. Muito ajudou nesta audição, é claro, a nostalgia e saudade desses remotos momentos de construtivo ócio e entrega juvenis que talvez não voltem mais... Mentira! Vão estar cada vez mais presentes agora que a maquinaria foi posta em movimento, largando ferrugem, teias de aranha e mofo. O equilíbrio, afinal de contas, só é atingido através dos extremos. Carpe diem pra vocês também. escrito por Chico Lacerda | 15:01 | quinta-feira, janeiro 16, 2003 ![]() Quando me perguntam se eu gosto de computador, eu respondo que “gosto do que ele me proporciona, mas não gosto da máquina em si”. Aí alguém diz “ah, é a mesma coisa que gostar de computador”. Não, não é. A mesma coisa vale para os arquivos em mp3. Se não fossem por eles, eu não conheceria muito do que ouço hoje. Mas eu acho que ouvir música em mp3 não é a mesma coisa que ter o disco original em mãos. Mesmo que os arquivos estejam gravados em áudio. Sem querer dar uma de Rob Fleming, mas o objeto faz parte do que você tá ouvindo. A capa, o encarte, o projeto gráfico, a sequência das músicas, o intervalo entre elas, enfim, tudo isso faz diferença. Eu tinha pego algumas músicas desse álbum do Wilco em mp3. Já se tornou lenda essa história: os caras gravaram o disco, a gravadora chamou o disco de “career-ender” e recusou-o; a banda comprou os originais, e procurou outro selo, o Nonesuch, para lançar o disco. Nesse espaço de tempo, o disco já circulava na internet muito antes de ser lançado. Quando o álbum finalmente saiu, os críticos se derreteram, tanto que o colocaram em quase todas as listas de melhores discos de 2002. Antes de ouvir o disco, eu lembrei do prefácio de Ivo Barroso para a Prosa Poética de Rimbaud, onde ele diz que muita gente se interessa por Rimbaud mais pela vida que ele teve do que pela própria obra em si. Será que a novela do Yankee Hotel Foxtrot faz dele um álbum melhor do que ele seria se aquilo não tivesse acontecido? A princípio, eu achei que era isso que tinha comovido tanto os críticos. Porque eu peguei algumas músicas pelo finado Audiogalaxy, e gostei; mas não consegui ver naquilo algo que merecesse tanto destaque, dado que a banda já tinha lançado álbuns geniais, como o anterior, Summerteeth, e antes deste, o Being There. Só recentemente eu tive a oportunidade de por as mãos no disco original. E sou a prova viva de que ouvi-lo assim é uma experiência diferente. Primeiro porque eu não tinha pego todas as faixas, e elas funcionam em conjunto. Segundo porque eu não as tinha escutado em ordem, e isso faz toda a diferença (“I am trying to break your heart” não poderia estar em outro lugar senão na abertura do disco). E terceiro pelas razões que expus no segundo parágrafo (a capa do disco é muito bonita, e o encarte tem todas as letras, e algumas fotos igualmente belas, embora simples). O comentário pode parecer batido, mas eu vejo o Yankee Hotel Foxtrot como um híbrido do Being There com o Summerteeth. O primeiro é um álbum duplo, lançado em 1996, repleto de baladas tristes e rocks mais pesados, como “Monday”; o segundo, de 1999, é mais pop e acessível, e sua sonoridade é um pouco mais “moderna” (vide o moog de “Always in love”) e menos pesada, especialmente nos sons da bateria e nas guitarras. No YHT, eles mantém a instrumentação e a duração do Summerteeth, além do mesmo clima em algumas músicas. Mas encontramos nele também alguns elementos mais experimentais que caracterizavam o Being There. “I am trying to break your heart” é um exemplo – ela segue a mesma linha de “Misunderstood”, a primeira faixa do Being There. “Kamera”, por sua vez, talvez seja a coisa mais pop que o wilco já fez. Mas digo “pop” num sentido muito distante de “bobo”. “No, it’s not ok”, canta Jeff Tweedy, com seu vocal cada vez mais preguiçoso. “Jesus, etc” tem uns violinos na introdução que quase põem tudo a perder, mas a música é uma balada cheia de soul. Já o hit do disco, Heavy Metal Drummer, tem uma letra nostalgica (nostalgia não é aquele sentimento que nos deixa triste mas feliz ao mesmo tempo?); ela abre com uma bateria eletrônica extraída de algum teclado barato, e Mr.Tweedy nos diz que tem saudades dos tempos em que tocava covers do Kiss no verão. É nostálgico, mas sem perder o senso de humor, e sem cair no pastelão. Genial. E tem ainda “Pot Kettle Back”, que começa com microfonias de guitarra, numa harmonia simplíssima, e nem por isso perde o tom triste: “I myself have found a real rival in myself/I am hoping for the revival of my health”. O Wilco fez um belíssimo disco de rock; pop sem ser babaca, e ao mesmo tempo ousado, sem cair na chatice. Jeff Tweedy canta sobre o passado, sobre as lembranças da juventude, sobre sua família, sobre estar longe de casa, sobre saudade, mas sem perder a ternura e sem soar meloso (talvez o único deslize do disco seja “Radio Cure”, mas não chega a comprometer o conjunto). E se o álbum foi incensado por todo o drama que antecedeu seu lançamento, nada mais justo. Porque além da música, do encarte, do projeto gráfico, e da capa, um disco é produto de uma situação, de um momento, e isso está contido nele; é tudo uma coisa só. O Wilco merece reconhecimento por ter feito um álbum fantástico, e por ter brigado para tê-lo lançado. Nota: 9,0 escrito por Haymone Neto | 05:11 | quarta-feira, janeiro 15, 2003 Ônibus 174 - José Padilha ![]() É um documentário de mais de duas horas de duração que conta com detalhes um ocorrido durante a tarde de 12 de junho de 2000 no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro: após um assalto mal sucedido a um ônibus, um criminoso mantém reféns durante mais de 5 horas dentro do ônibus, cercado pela polícia, repórteres e uma multidão de curiosos. Na época, o fato teve farta cobertura da mídia, com as imagens do sequestro ocupando todas as emissoras de televisão durante toda a tarde e nos telejornais e programas de variedades na noite e dia seguintes. Mesmo assim o filme consegue ir fundo, muito fundo no assunto. Tanto que assusta. Foi feita uma pesquisa exaustiva em cima de tudo que se relacionou ao ocorrido. A vida de Sandro, o sequestrador, foi completamente exposta, desde o trauma na infância, quando ele viu a mãe sendo degolada até os dias que precederam o sequestro, quando ele, após encontrar alguém para substituir a mãe, tenta se alinhar na vida, passando por sua adolescência na rua e passagens por casas de correção. Os reféns, a polícia, os repórteres e, o mais importante, a ação, tudo foi destrinchado, dissecado, aberto e mostrado no filme. É verdade que em documentários competentes isso é o de praxe, a pesquisa do tema tem que ser profunda e completa. A jogada de mestre, aquilo que fez diferença e o tornou o filme uma obra especial foi seu formato: se no filme A Bruxa de Blair os diretores fazem um filme de terror a partir de imagens que querem se fazer crer verídicas, neste aqui o Padilha consegue com maestria fazer um filme de terror com imagens realmente verídicas. Juntou o farto material audio-visual disponível do dia do sequestro com relatos, entrevistas e pesquisas. Posicionou o sequestro como espinha dorsal do filme; a ação do dia é mostrada passo-a-passo, cronologicamente, durante as pouco mais de duas horas de duração da projeção. E em paralelo a isso colocou todo o material de pesquisa, extrapolando os limites da tragédia localizando-a dentro do complexo sistema que é a sociedade em que vivemos, construindo e estudando os participantes da ação (sequestrador, polícia, reféns), destrinchando as causas e motivações para cada gesto deles, criando tensão, suspense, estupefação e reflexão no público, repetidamente. Ou seja, ele usou da linguagem do cinema de ficção - principalmente do gênero de suspense, via montagem e dosagem no acesso às informações - com total competência, para reconstruir o sequestro. E, o que só comprova seu talento, usando cenas reais filmadas com outro objetivo que não esse. Meu reflexo inicial foi o de censurar essa estratégia, pois há todo um código de ética em torno dos documentários, que na teoria se propõem a mostrar a verdade sem qualquer manipulação. Mas percebi que não houve falta com a verdade nem com a realidade no caso desse filme. Todos os fatos estão lá e o senso de realidade nunca é perdido, muito pelo contrário. E a criação de reflexão, estupefação e até revolta ante os fatos via linguagem cinematográfica é das mais justas. Enquanto o Cidade de Deus, sem querer tirar os méritos do filme - que acho foderoso, por sinal - amacia a situação filmada via estética, montagem e clichês do cinema, o Ônibus 174 amplifica a gravidade da situação através da mesma linguagem, para tentar atingir os olhos e ouvidos de um público há muito tempo treinado para ignorar estas mazelas, os invisíveis citados no próprio filme. A amplificação da tragédia tem um objetivo nobilíssimo, atingido com perfeição. Todos os méritos para José Padilha e sua equipe que fizeram um documentário de ação, suspense e terror - por mais contraditório e recriminável que isso pareça - dos melhores, sem se distanciar nem um pouco da realidade, na verdade se emaranhando com vontade nela, e que consegue como nenhum outro filme que eu tenha visto abrir os olhos dormentes do público para esta realidade. Uma obra sem par. escrito por Chico Lacerda | 16:50 | terça-feira, janeiro 14, 2003 God Bless You, Mr. Rosewater, or Pearls Before Swine - Kurt Vonnegut Foi o primeiro livro que eu li de Kurt Vonnegut e posso dizer que foi uma excelente primeira impressão. É o quinto livro deste escritor americano que conheci através de uma amiga que muito o elogiou. Foi publicado pela primeira vez em 1965. Conta a história da Corporação Rosewater, um conglomerado de empresas que soma a maior fortuna dos EUA, construída pelo bisavô do protagonista a partir de uma fábrica de serrotes. Dentro desta corporação há a Fundação Rosewater, dedicada a apoiar financeiramente projetos culturais e sociais, cuja diretoria é passada de pai para filho (ou parente mais próximo) dentro da família Rosewater através de regras bastante rígidas, criadas com o objetivo de sempre manter a família no poder. Eis que a diretoria desta fundação cai nas mãos de Eliot Rosewater depois que seu pai desiste do cargo para seguir carreira como senador. Eliot, o personagem central da trama, se revela a ovelha negra da família. Tendo um senso crítico e de justiça bastante aguçado, ele cria teorias mirabolantes, utópicas e obsessivas sobre redistribuição de renda e quebra do modelo econômico de então que massacra as pessoas aos milhões. Impulsionado por essas teorias e crenças, ele passeia de projeto em projeto através da fundação, tentando fazer algo para modificar o quadro que vê, até que monta um escritório na cidade natal da fundação da corporação, o condado de Rosewater, e se dedica em tempo integral a ajudar as pessoas do local - massacradas depois que as indústrias do seu bisavô sugaram tudo da área e partiram para outro lugar - com qualquer coisa que elas precisem, de dinheiro a remédios a amor. ![]() Estes arquivos são pesquisados e coletados por um advogado novato na firma, Norman Mushari, a partir da teoria que a forma mais rápida de se ficar rico é aproveitar os raros momentos quando uma fortuna passa de uma mão para outra. De acordo com uma das cláusulas da Fundação Rosewater, o presidente pode ser destituído se for considerado psicologicamente incapaz. E como Eliot não tem filhos, a presidência passaria a seu parente mais próximo, um primo distante de Eliot, Fred Rosewater, de quem nem a própria família tem conhecimento, apenas descoberto através das pesquisas de Mushari. Provando então que Eliot - com suas teorias e crenças na bondade e nas pessoas - é louco, Mushari poderia se aproveitar quando a fortuna passasse para as mãos do primo pobre de Eliot. E se Vonnegut expõe a ganância e a hipocrisia dos ricos através da família Rosewater, expõe da mesma forma as mazelas dos perdedores através deste ramo desconhecido da família e de seus vizinhos e amigos, morando numa cidadezinha à beira da falência com sonhos fúteis de luxo e ostentação alimentados pelas revistas e TV, tudo isto através de um olhar cínico e mordaz. E é esta tensão gerada a partir do embate entre todos estes personagens, junto com o protagonista, Eliot, com seus sonhos de justiça e igualdade e seu amor incondicional pelas pessoas, e um final surpreendente, daqueles que fazem o coração pular nas últimas linhas, que tornam o conteúdo do livro extremamente interessante e relevante, suscitando de forma satírica e crítica questões existenciais e humanistas de suma importância ainda (e principalmente) nos dias de hoje - pontos inclusive revisitados em obras mais recentes, como o filme Clube da Luta, de David Fincher e o álbum Ok Computer, da banda Radiohead. E o interessante é que foi um livro escrito há quase quarenta anos. escrito por Chico Lacerda | 16:11 | |
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