O Sítio
Aquele velho projeto de fazer um fãzine com os amigos...


terça-feira, julho 08, 2003  

Procurando Nemo - Andrew Stanton e Lee Unkrich

Analisemos o enredo a seguir: temos uma dupla de protagonistas, de personalidades diametralmente opostas ou talvez complementares. Eles competem, rivalizam ou simplesmente não se dão bem, mas terão que ficar juntos na tentativa de atingir um objetivo que ambos compartilham, talvez por razões diferentes. Um deles tem um problema, uma falha de caráter, um trauma, e esse problema irá ser superado nesta busca tanto pela convivência com o parceiro quanto pela necessidade de se atingir o objetivo. O outro também tem um problema, um defeito, mas é menos prejudicial que o do primeiro, muitas vezes até engraçado e/ou charmoso e por isso não terá que ser superado. A busca deste objetivo final será uma longa viagem, tanto em termos de distância quanto de obstáculos a serem superados. Ao final tudo dará certo com o objetivo atingido e os protagonistas engrandecidos.

Estamos falando do filme Procurando Nemo, novo lançamento da Pixar? Sim, mas também do Toy Story. E deToy Story 2, Shrek, Caminho para Eldorado e boa parte dos últimos lançamentos de longas americanos em animação. Todd MacFarlane, num documentário sobre filmes em animação japoneses, fala que o grande problema dos filmes em animação americanos são os limite auto-impostos: restrição temática; escolha por uma abordagem simplista dos temas em detrimento de uma abordagem mais realista e consequentemente mais complexa; proibição de certos tipos de sexualidade e até o sexo, quando não é inexistente, tem espaço mínimo. Na verdade isto parece ser um problema do cinema comercial americano como um todo, desde que decidiu-se direcionar este cinema a um público mais jovem ao perceber ser esta a sua maior fatia de mercado consumidor. A situação se agrava um pouco mais com os filmes em animação, quase completamente direcionados a um público ainda mais jovem.

Mas temos uma vantagem neste tipo de cinema, exatamente pelo direcionamento ao público infantil: há uma menor cobrança pela factibilidade do tema ou universo abordado. Desde o início do cinema clássico americano de animação, com Walt Disney, temos ao contrário uma busca constante pelo mágico e fantástico, por expandir os limites da realidade. Quando esse tipo de liberdade é aplicado fora do cinema de animação, temos obras surpreendentes como O Tigre e o Dragão e Quero Ser John Malkovich.

Esse é o grande trunfo do Procurando Nemo e de outros lançamentos recentes em animação da Pixar: transportar o espectador para um universo completamente novo. Ao mundo dos brinquedos em Toy Story, ao dos monstros em Monstros S.A. e agora ao fundo do mar. E não é o fundo do mar mitológico das sereias, reis, bruxas e piratas de A Pequena Sereia, que seguia o costume da Disney de humanizar - ou talvez americanizar - os universos abordados. É o fundo do mar dos peixes, de algum lugar perto de Sidney, Austrália.

O peixe é Marlin, traumatizado após perder a esposa e todos os filhos durante o ataque de um peixe-espada. Todos menos um, Nemo, a quem o pai super-protege. É lutando contra essa super-proteção que Nemo é capturado por mergulhadores e vai parar no aquário de um deles, um dentista. Temos então o objetivo, salvar Nemo. O prazo são 5 dias, pois após esse período Nemo será dado de presente à sobrinha do dentista, uma garota sádica ao som dos violinos de Psicose, num plágio do garoto torturador de brinquedos de Toy Story. O par de Marlin vai ser Dory, um peixe fêmea com o sério problema de perda da memória recente e por isso mesmo nem um pouco prudente, um contraponto ao gênio extremamente cauteloso de Marlin.

Falar é fácil, colocar o espectador em outro universo. Percebe-se no entanto um grande talento - e uma boa dose de pesquisa - ao realmente entrar dentro da cabeça de um peixe, ver a realidade através daqueles outros olhos. Não só um peixe, mas cada um dos animais é apresentado dentro de sua própria lógica de forma criteriosa, unindo a personalidade do personagem à natureza da espécie à qual ele pertence com perfeição.

Temos então todos os elementos de um bom filme da Pixar, o que já o torna um filme acima da média dentro dos padrões de longas de animação americanos, ainda que movendo-se dentro dos limites auto-impostos citados por Todd MacFarlane. A única coisa que faltou para ele chegar ao patamar de um grande filme, dentro dos filmes de animação americanos, foi vida nos personagens. Temos personalidades bem delineadas, conflitos reais e lógicos, um universo recriado nos mínimos detalhes sob uma animação perfeita, humor inteligentíssimo, ótimo ritmo narrativo, grandes cenas de ação e suspense. Você cria um modelo lógico da história na sua cabeça, você entende as motivações dos personagens, você torce por eles, mas fica tudo na cabeça. É a diferença sutil mas de extrema importância entre entender o personagem e sentí-lo. Sentir a dor da partida e depois a tranquila alegria do reencontro entre Sulley e Boo - o monstrão e a garotinha de Monstros S.A., este sim alcançando uma posição de destaque entre os longas de animação americanos dentro do cinema comercial.

Esperaremos então pelo próximo Pixar e, enquanto isso, nos divertiremos com todo o resto de bom que a empresa tem trazido, numa saudável quebra de um monopólio já capenga que havia na produção de longas de animação nos Estados Unidos. E que venham outras.

escrito por Chico Lacerda | 12:12 |


quarta-feira, julho 02, 2003  

Hulk - Ang Lee

Eu fui assistir a Hulk com duas expectativas contrárias, que no final das contas talvez se anulassem: exultante ao saber que o filme seria dirigido por Ang Lee, diretor de grandes filmes como Banquete de Casamento e Tempestade de Gelo e de filmes legais como Razão e Sensibilidade e O Tigre e o Dragão; desapontado ao ver aquele boneco digital mal feito no trailer. Depois de ver o filme, posso dizer que a primeira expectativa foi completamente preenchida - Hulk conseguiu entrar para a lista dos grandes filmes de Ang Lee - e a segunda desfeita - o boneco digital mal feito está lá, e junte-se a isso o fato das atuações serem em geral muito fracas, à exceção de Nick Nolte. Mas a força da história e dos personagens conseguiu desviar a atenção desses problemas, transformando-os em constatações de muito pouco peso em comparação com todo o resto.

E foi o que causou mais surpresa e estranhamento, em se tratando de um blockbuster baseado uma história de quadrinhos (sem querer tirar o mérito das histórias em quadrinhos, tirando-o na verdade dos blockbusters baseados em histórias em quadrinhos): os personagens são complexos, humanos e a história é totalmente centrada neles e na relação entre eles. O conflito é basicamente entre pai e filho. Um pai que passou para o filho a vontade de criar um ser superior (e é na mesma pesquisa do pai que Bruce Banner trabalha, anos depois, mesmo sem saber disso e com objetivos bem menos egoístas), passou também para ele o próprio e incontrolável ser superior e, depois de anos de calmaria, fez emergir esse ser através da revolta do filho. Revolta pela própria conduta do pai em relação ao ele, pois David Banner retorna apenas para dar conclusão às suas pesquisas - seja através das pesquisas do filho, seja através do controle do ser superior dentro de Bruce. Adicione aí um trauma de infância reprimido e causado pelo próprio pai, quando então uma chuva de radiação é fichinha em termos de trazer à tona o ser irracional que há dentro de si. Não é surpresa que o clímax do filme seja o embate entre pai e filho, sob um mar de refletores e rodeados de escuridão, trazendo à lembrança embates de filmes como Sonata de Outono e Lavoura Arcaica.

Outro grande personagem é Betty Ross, que poderia facilmente, nas mãos de outro diretor ou roteirista (James Schamus, mesmo d'O Tigre e o Dragão e Tempestade no Gelo), ter virado o par romântico de Bruce. Pelo contrário, eles já começam o filme como ex-namorados e a condição de Bruce causa em Betty, a princípio, apenas repulsa, para logo se tornar apreensão, numa lenta e real evolução do personagem. Só no epílogo do filme a aceitação é finalmente atingida, provavelmente tarde demais.

É também uma história com grande viés político, onde o exército (e sua falta de ética na busca de novas armas de guerra e no controle da vida das pessoas) e o capitalismo (e sua falta de ética na busca de dinheiro) são vilões secundários. O discurso de David no clímax deixa isso muito claro, inclusive mencionando literalmente os desmandos e as quebras de protocolos do exército americano mundo afora. Talvez tenham sido comentários estrategicamente escritos para o vilão do filme, pois de outra forma haveria grande probabilidade de terem sido vetados.

E só mesmo um grande talento pra conseguir unir com sucesso esses elementos realistas e atuais numa abordagem descaradamente fantástica, outro grande ponto de interesse do filme. Ang Lee poderia ter abdicado do boneco digital em favor de um ator de carne e osso sob o efeito de ângulos estratégicos de câmera, como por exemplo o imenso John Coffey (Michael Clark Duncan) de À Espera de um Milagre, e feito um filme sóbrio e realista. Mas não só preferiu o boneco digital, como o fez percorrer o mundo através de pulos e malabarismos, criou cães monstros e ao final, extrapolou os limites do fantástico que havia criado com um monstro de eletricidade, depois de nuvens, depois de pedra, depois de água, depois de energia pura. Tudo isso sem negar ou mesmo interferir nas outras características da obra.

Uma coisa muito interessante no filme foi o uso abundante de subdivisões da tela. Se num extremo temos Brian de Palma, que usava esse recurso pontualmente em muitos de seus filmes desde Carrie (1976) e no outro Mike Figgis, que dividiu a tela do seu Timecode (2000) em quatro durante toda a extensão do filme, Ang Lee parece ter achado um ponto de equilíbrio satisfatório. Temos, em grande parte das cenas, várias sub-telas mostrando a ação sob diferentes ângulos ou mostrando ações diferentes ocorrendo em paralelo de forma natural e sempre útil, ajudando na compreensão do todo através da síntese de informações complementares.

O mesmo já não se pode dizer do uso de cortes diferentes, como por exemplo a transformação de uma sequência de cenas em faces de um cubo, passando de uma para a outra através de sua rotação, ou a tranformação das cenas em quadros na página de um gibi, passando de uma para a outra através de vôos na página. Talvez quisesse ser uma homenagem às histórias em quadrinhos, mas não faz sentido essa homenagem ser feita usando-se recursos desta mídia que não cabem no cinema. No final me pareceu apenas uma afetação estilística sem muita utilidade e, pior, de mau gosto, lembrando os excessos do mago da cafonice, Hans Donner.

Maior homenagem é mesmo esta grande adptação da história, captando e amplificando os conflitos mais interessantes do personagem dos gibis, usando-o para comentar muito da situação atual do mundo e de quebra fazendo um excelente filme de ação.

escrito por Chico Lacerda | 20:58 |
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