O Sítio
Aquele velho projeto de fazer um fãzine com os amigos...


terça-feira, fevereiro 18, 2003  

O Cinema

As cortinas cheirando a mofo roçaram de leve em seu rosto e logo seu Juarez foi engolido pela escuridão da sala.

A princípio só o que via era a tela e na tela os corpos, membros principalmente, em closes devassadores. E os pontos iluminados das brasas dos cigarros furando o negrume qual vaga-lumes.

Logo que começou a perceber as cabeças na escuridão, e as poltronas onde se depositavam os donos das cabeças, deu alguns passos em direção ao corredor lateral da sala. Agora já conseguia distinguir também outras cabeças, não aquelas de olhos vidrados na tela. Estas outras oscilavam, ávida ou suavemente, no colo dos donos daquelas num movimento que espelhava a ação na tela.

Passou sem perceber a língua nos lábios e procurou na escuridão o habitual convite que sempre chegava, mais cedo ou mais tarde, de uma pessoa ou outra. Chegou mais cedo, de uma poltrona poucas fileiras atrás: um par de olhos o fitava com tranquilidade enquanto alguns centímetros abaixo uma mão expunha a carne – farta – pendente do colo de seu dono.

Seu Juarez se dirigiu discretamente à poltrona vaga ao lado do convidador e fingiu vidrar também os olhos na tela, aguardando a confirmação do convite que veio num leve roçar de joelhos. Olhou mais diretamente para o dono da carne farta, que lhe olhou de volta com olhos profundos, envolventes e estranhamente brandos.

Desconcertado por um instante, fez menção de levar a boca até a carne, saciar a fome (de ambos?) mas foi impedido pela mão do outro, que lhe amparou ternamente o rosto com a palma, fixando novamente os olhos nos dele. Olhos límpidos, transparentes, aterrorizantemente sinceros e ternos.

Tentou novamente, confuso, levar a cabeça até o colo do outro, mas a mão continuou firme, os dedos acariciarando suavemente a barba por fazer de seu Juarez. E seus olhos continuaram a fitá-lo, atraí-lo para aquele abismo de escandaloso afeto.

E atraído ele foi, inevitavelmente, até que os lábios de ambos se tocaram com candor e carinho inconcebíveis entre dois estranhos, descortinando realidades impensáveis e fazendo o coração de seu Juarez acelerar até o insuportável.

De um pulo se levantou da poltrona, em pânico, e sussurrou embaraçado desculpas no ouvido do outro. Tanta e tão aberta ternura envergonhava sua saída covarde e apertava-lhe o peito com ecos de oportunidades perdidas e vidas desperdiçadas.

Já do lado de fora o coração desacelerava em contato com sua realidade. Trabalho, casamento, filhos o lembravam com alívio de quem ele realmente era e com alguns passos já estava novamente com a cabeça nas reconfortantes preocupações diárias.

Mas era tarde demais. Seu Juarez começaria a partir de então, com freqüência gradualmente maior, a acordar no meio da noite, banhado em suor, de pesadelos que jamais ousaria contar. E por mais que se convencesse de que voltava àquele local para saciar a fome de sua boca pela carne, socialmente mais aceitável e até boa construtora de reputação na medida que afirmava seu desprezo pela feminilizante fidelidade no casamento, seus olhos, a contragosto, estariam sorrateiros à procura daqueles outros olhos que de tão límpidos deixavam à mostra aquela alma desinibidamente terna, na qual a sua desejava desde então, sôfrega e veladamente, estar contida e conter.

escrito por Chico Lacerda | 18:48 |


segunda-feira, fevereiro 10, 2003  

The Good Girl – Miguel Arteta

A admiração por um filme geralmente vem de uma soma dos diversos mecanismos que compõem a arte do Cinema: atuação, cenários, efeitos especiais, diálogos, câmera, música, enredo, montagem (único inerente a esta arte, e talvez por isso um dos mais interessantes e admiráveis). Mas por mais que a montagem de O Doce Amanhã, a beleza de 2001 - Uma Odisséia no Espaço ou as cenas de O Pagamento Final me deixem embasbacado na cadeira do cinema, nada supera o impacto de uma boa personagem. Quem sabe pelo perfil muito mais emocional que tem esta ligação que se consegue criar entre espectador e personagem, em contraste com a admiração meramente intelectual dos outros mecanismos.

Talvez por isso, por mais que eu admire o Cinema de Brian de Palma, ele não consegue me empolgar tanto quanto Woody Allen. Assim como o faz Truffaut, em comparação a Hitchcock. E o filme The Good Girl (Por um Sentido na Vida em português, tradução idiota) é um exemplar excepcional deste tipo de filme.

O filme é Justine Last, empregada de uma loja de departamentos duma pequena cidade dos EUA. Passando por uma crise no casamento e na vida (emprego medíocre, tedioso e sem perspectivas; marido alheio a tudo dentro de uma eterna chapação com seu melhor amigo; colegas igualmente alienados), ela começa a se envolver com Holden, colega de trabalho mais jovem e com uma fixação por J. D. Salinger, em especial pelo Apanhador no Campo de Centeio e único que compartilha de seu desânimo e descrença.

O enredo vai seguir por caminhos já muito visitados - principalmente pelos irmãos Coen - onde Justine começa a se emaranhar cada vez mais em problemas decorrentes deste caso extra-conjugal e a sentir saudades daqueles tempos de tranqüilidade medíocre. Apresenta, apesar disso, uma rara sobriedade, servindo de forma magnífica para ressaltar esta personagem extraordinariamente real, ajudado por uma atuação naturalista como poucas de Jennifer Aniston.

Se Eleição e Enfermeira Betty mostraram personagens parecidas com esta, em vidas parecidas, o que destaca este filme é a simplicidade e a sobriedade. Do enredo aos cenários, da montagem aos personagens secundários, tudo é despretensioso e espartano a ponto de não tirar nunca o foco e o interesse de Justine, seu grande trunfo, nem de chamar a atenção pra si mesmo como filme, e sim como vida.

A identificação chega a tal ponto que, torcendo por ela em suas situações e dilemas excepcionalmente humanos, parece que estamos na realidade torcendo por nós mesmos, para que achemos também uma saída e um sentido, caminhando junto com ela nessa busca. E isso não é pouco.

escrito por Chico Lacerda | 14:27 |


terça-feira, fevereiro 04, 2003  

Talking Heads – Remain In Light (1980)

Música é um aprendizado constante. Por não entender, muita coisa passou batida na minha vida. O que não é o caso desse álbum.

Por muito tempo achei, inconscientemente, que música era melodia. Tive também a fase obsessiva por harmonia, pela técnica, pelo timbre. Só recentemente vim me ater com mais atenção ao ritmo. E ninguém sabe mais de ritmo que a mamãe África.

Se tudo aquilo que a gente chama de “música negra” sempre enfatizou o ritmo, foi só quando ouvi Fela Kuti que pude gritar, eureka! Fela Kuti nasceu na Nigéria, tocava uma pá de instrumentos, era socialista, gostava de trepar e cantou boa parte dos seus discos em inglês, mesmo sem dominar o idioma (uma das músicas dele se chama “Water No Get Enemy”). Fela é constantemente tido como o fundador do Afro-Beat, rótulo que não quer dizer nada, mas diz tudo se você já ouviu alguma coisa dele. As músicas de Fela Kuti eram jams gigantescas em torno de um mesmo tema e, principalmente, de um mesmo groove, geralmente levado por guitarra, baixo e muita percussão.

Em 1980 o Talking Heads já era uma banda consagrada. Já tinha gravado dois discos com Brian Eno, e já começara a flertar, ainda que timidamente, com ritmos africanos. Mas foi em Remain In Light que esse flerte virou fissura. Nos primeiros 5 segundos do disco já dá para perceber que tudo está diferente: a percussão é complexa e polirritmica, o guitarrista não para de movimentar a mão direita, e o baixo intervém sintetizado com slaps.

Mas o que faz desse disco um clássico não é só a aproximação com o afro-beat. O Talking Heads mergulhou num estilo sem perder sua identidade. Ao mesmo tempo que o som causa estranhamento, não dá para duvidar que aquilo seja outra coisa senão o próprio Talking Heads. As letras de David Byrne continuam do mesmo jeito, e o mesmo vale para sua interpretação. Mas, como disse o cara do allmusic, esse é disco que tem mais texto, mas ao mesmo tempo é onde ele menos importa.

E a produção de Brian Eno é impressionante. Ele consegue colocar um monte de instrumentos, um monte de vozes, e fazer com que tudo fique no seu devido lugar. E, claro, não faltam efeitos sonoros, barulhinhos, e tudo aquilo que vem à mente quando a gente lembra de Brian Eno.

Eu podia até descrever cada faixa do disco, mas não faria muito sentido dada a complexidade de cada uma delas. O que eu posso dizer é que o final do disco foge um pouco dos ritmos, e adota um tom mais soturno. Particularmente não simpatizo com esse tipo de coisa, mas não acho sejam ruins. Mas o que marca no disco são as 6 primeiras faixas, onde há maior ênfase na questão percussiva.

O Talking Heads fez o que poucas bandas conseguiram: ao invés de mudar seu universo musical(o que seria muito simples), ela o ampliou, incorporando outros elementos mas sem esquecer sua marca. Gravou um disco quase perfeito: bem produzido, bem executado, acessível sem ser vendido, e experimental, sem perder o foco.

Eu provavelmente não gostaria desse disco de não tivesse passado a prestar mais atenção na parte rítmica da música. E, principalmente, se não tivesse conhecido Fela Kuti antes (o que não faz com que todo mundo tenha que ouvir Fela Kuti pra gostar do álbum em questão). Mas isso tudo só prova minha teoria: música é um aprendizado constante. Não é só ouvir; é preciso entender a música.

Nota: 9,8.

escrito por Haymone Neto | 04:51 |
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